Luis Miguel Cintra: "Os filmes de Manoel de Oliveira são uma busca permanente"

Luis Miguel Cintra foi um dos mais antigos e fiéis colaboradores do cinema de Manoel de Oliveira, desde que entrou na trupe do realizador em Le Soulier de Satin, em 1985. Viveu a dor da sua perda, primeiro, em silêncio, mas esta sexta-feira, à margem do funeral, aceitou prestar este depoimento sobre os longos anos de trabalho com Oliveira.

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Luis Miguel Cintra é Camões em O Velho do Restelo

"Com a morte de Manoel de Oliveira fica um exemplo. Ele foi o sustentáculo de tudo o que de interessante se fez no cinema português, e fez-se muito, e foi tudo a partir da sua obra. É como se Oliveira tivesse aberto a porta para deixar as pessoas passarem por um caminho em que ele nunca confundiu o trabalho dele de cineasta com o do cinema comercial. E que foi sempre de defesa do cinema como actividade artística, de criação absoluta em que, naturalmente, o realizador é o grande criador, em pé de igualdade com um pintor ou um escritor.

Essa foi a grande marca do cinema português, não só de Oliveira mas de outros cineastas que se lhe seguiram, e que devem muito a ele e à sua intransigência.

No meu caso, funcionou como um facto de profunda admiração. Eu comecei a perceber o que era o cinema, e a gostar de cinema, quando vi O Acto da Primavera. Eu não era actor, não era nada. De repente, fui ao cinema ver aquilo, que para mim era apenas a filmagem de um Auto da Paixão feito por amadores de Trás-os-Montes, e o filme mostrou-se-me uma coisa absolutamente arrebatadora. Não só pelo aspecto religioso, que, evidentemente, era muito importante. Mas também pelo que a câmara revelava sobre aquelas pessoas, sobre a relação do homem com deus e com a vida. E percebi que o cinema era uma arte muito importante, quando encarada daquela maneira. Daí veio uma atitude que se se prolongou durante toda a vida.

O cinema não é uma profissão. Eu nunca fui um profissional de cinema, fui sempre um actor que colaborou como artista na obra de outros artistas. E isto é uma marca que o Manoel deixou, e a quem todos os realizadores de cinema português têm que ficar agradecidos.

Não quer dizer que vão fazer um cinema igual ao do Manoel. Aliás, nota-se bem que os cineastas mais jovens têm o respeito que normalmente se tem por um grande artista, mas o cinema que fazem já não tem nada a ver com o do Manoel. Naquela altura, foi muito importante um cinema em que a palavra era também muito importante. Isso também foi um factor de ligação entre mim e ele. Porque tenho formação em estudos literários e linguísticos. Foi um encontro muito importante, quando me convidou e comecei a trabalhar com ele.

O Manoel tinha um pudor gigantesco nas relações humanas. Muito poucas vezes o vi partilhar questões mais íntimas, aspectos mais delicados ou sobre os quais não se sentia seguro. Era um homem que gostava da dúvida. Basta olhar para os filmes dele para se perceber que está permanentemente à procura de uma certeza sobre a vida. Sobre a existência humana, sobre a relação com alguma coisa de transcendente, com aquilo que se costuma chamar deus. Os filmes dele são essa busca permanente. Não um filme em especial, mas todos, em sequência. É como se fosse a própria actividade de pensar, de reflectir sobre a vida e tentar descobrir através da câmara. É o trajecto dele, a vida dele, através do cinema.

Nunca tive uma grande intimidade com ele, porque ele tinha sempre um grande respeito pelas outras pessoas, e não era só comigo. No sentido em que eu sou eu, você é você, em que você pensa o que tem que pensar; eu penso o que tenho que pensar. O interessante é que, quer a gente se oponha, quer esteja de acordo, fá-lo sempre como pessoas adultas. Foi sempre assim.

Mas o Manoel era uma pessoa extremamente afectiva. Percebeu que eu tinha por ele uma amizade pessoal enorme. Muitas vezes o vim visitar, e as nossas conversas iam mais longe. Tocavam pontos que tinham a ver, de facto, com o que se pensa sobre estar vivo. Às vezes, era eu que ficava muito tempo à espera, sem dizer nada. Mas depois, de repente, a conversa começava a fluir, e ele dizia coisas espantosas, duma reflexão profundíssima, e sempre muito curioso sobre o que eu pensaria sobre os mesmos assuntos.

Era evidente que isso me dava uma grande satisfação, e percebi que ele tinha também um respeito por mim muito grande. Quando foi a atribuição do Prémio Pessoa [2005], fiquei de boca aberta quando vejo o Manoel a entrar pela sala dentro. Foi a Lisboa de propósito para estar presente na atribuição. Como se tivesse muito orgulho em que eu tivesse uma existência separada da dele.

Isso também foi muito estimulante. Mas não quer dizer que ele gostasse tanto dos espectáculos que eu fazia como eu gostava dos filmes que ele fazia. Ele foi ver a Cornucópia muitas vezes — não foi mais vezes, por causa dos seus problemas de surdez. E das poucas observações que me fez, mas que me ficaram sempre na cabeça, porque sempre dei muita importância ao que ele pensava, este exemplo: ‘Tem efeitos a mais e, no teatro, não é preciso nada; basta ter um actor em cena’. São coisas que, no fundo, tocam também em convicções profundas da minha parte, mas que a gente nunca tem coragem de assumir com esta clareza, com esta radicalidade.

A última vez que estive com o Manoel foi na rodagem de O Velho do Restelo. Tenho um sentimento muito contraditório em relação a isso. Por um lado, gosto muito que o nosso último encontro tenha sido em trabalho, no plateau. Mas, por outro lado, pesa-me um bocado na consciência não o ter vindo ver depois disso.”


Depoimento recolhido por Sérgio C. Andrade

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