Oliveira, um caso português

Após o consenso das homenagens, vamos continuar a decifrar — e a experimentar — Manoel de Oliveira

Quando em Setembro de 2012 Manoel de Oliveira foi homenageado na Assembleia da República, Assunção Esteves disse que “é de perfeição que aqui se fala”. Oliveira, então com 103 anos, agradeceu e não se alongou. Disse o essencial: “E viva o cinema!”

Decidimos nesse dia que uma fotografia da cerimónia deveria ser a imagem principal da capa do jornal. O realizador estava frágil e a recuperar de uma crise cardíaca. Iria ter energia e força para continuar a filmar e a ser notícia?
Foi isso, claro, que Manoel de Oliveira continuou a fazer. Apenas duas semanas mais tarde estava de regresso à capa do Ípsilon e do PÚBLICO. A notícia era a estreia do seu filme O Gebo e a Sombra, no Festival de Veneza. E assim continuou mais três anos, a fintar as convenções, as previsões e o tempo. A curta-metragem O Velho do Restelo estreou, também em Veneza, em Setembro do ano passado. O neto disse ontem que ainda há quinze dias o avô saiu de casa e esteve a trabalhar num projecto. Oliveira morreu a fazer filmes. Era o seu desejo e conseguiu-o. Fez 70 filmes e, de certo modo, acabou como começou a sua vida de 83 anos no cinema: a confundir e a dividir a crítica, deixando os espectadores desconcertados. Reverenciado por alguma crítica internacional, desprezado por muito público português, Oliveira tornou-se um “caso” emblemático da incapacidade de nos revermos nas imagens e nos sons daquilo que é o “cinema português”.
Toda a gente sabe quem é Manoel de Oliveira. Com o orgulho de quem conhece e admira um ícone. Mas neste caso com a total incompreensão em relação à matéria de que ele é feito. Invenção internacional! A sua longevidade dobrou a crispação que em tempos — nos idos da década de 70, quando a teatralidade de Amor de Perdição escandalizou — esteve ao rubro. Mas dificilmente levou mais público a querer desafiar-se como espectador. Quando, no PÚBLICO de 13 de Outubro de 1996, Marcello Mastroianni, actor em Viagem ao Princípio do Mundo, dizia, dirigindo-se a nós, “Manoel de Oliveira é uma espécie de monumento. Talvez vocês, portugueses, não o saibam, mas este homem é conhecido a nível internacional. Ele faz um cinema muito especial e foi isso que me interessou”, o actor assinalava, como se nos apontasse o dedo, uma dificuldade que é nossa, que é uma espécie de Cabo Bojador ainda por dobrar. Temos de sentir esse dedo apontado: sim, sabemos que Oliveira é conhecido a nível internacional, e isso até já nos irritou; mas não, não sabemos, para além dos lugares-comuns construídos, o que é a experiência de um filme de Manoel de Oliveira. Não é o cinema dele que se recusa encontrar-nos, nós é que temos dificuldade em saber o que ali está. É uma figura totémica (Ingmar Bergman, no seu país, também é um caso de incompreensão ou de recusa) que corremos o risco de, depois do consenso de homenagens e declarações oficiais, continuar por decifrar. Por experimentar.

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