O extraordinário Michel Houellebecq

Tragico e cómico, o escritor polémico torna-se actor funâmbulo em dois filmes extravagantes, Experiência de Quase-Morte e O Rapto de Michel Houellebecq.

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Dois filmes extra-terrestres (poderia ser de outro modo com Houellebecq?), duas narrativas diferentes e um mesmo actor habitado por uma comicidade subtil e afundado num abismo de melancolia poética DR

Está obcecado pela morte. Largar tudo, fugir, desaparecer. Esta tristeza existencial tem um corolário, surpreendente mas previsível: é cómica, muito cómica. Sabemo-lo bem, há muito tempo: todos aqueles que nos fazem rir, simples pessoas próximas ou vedetas do humor, são, muitas vezes, seres que sofrem. No fundo, os palhaços são sempre tristes.

Michel Houellebecq, o escritor, tornou-se actor pelo tempo de dois filmes. Dois filmes extra-terrestres (poderia ser de outro modo com ele, criatura genial e fora do seu tempo?), lançados ao mesmo tempo. Duas longa-metragens, duas narrativas muito diferentes e, no entanto, um mesmo actor que explode no ecrã, habitado por uma comicidade subtil e afundado num abismo de melancolia poética.

Experiência de Quase-Morte: uma abertura crepuscular. Durante dois minutos e meio, uma trovoada e a noite convidam à introspecção, à imobilidade animal perante o cenário do dilúvio. E, de repente, estamos num restaurante de província. Ao balcão, Michel Houellebecq bebe um pastis, troca algumas palavras com outros circunstantes e continua a beber. Está fisicamente esgotado, o rosto exaurido, tocante. Reencontramo-lo na rua, ao sol, imóvel, como que em choque. Volta a casa visivelmente exausto e reencontra a mulher, os filhos, cujos rostos não vemos. Gritinhos das crianças, frases banalíssimas trocadas com indiferença. O cão ladra no vazio, Houellebecq fuma, Houellebecq espreme uma embalagem de vinho tinto até dela extrair a última gota. Degradação. Em seguida, de novo, a noite. Houellebecq diz à mulher que vai sair, mas não demora. Monta na bicicleta, envergando um equipamento coleante e fluorescente, ridículo. Começa a rolar, sai do campo da câmara, que permanece fixa. E parte. A fuga começou.

O resto do filme vai desenrolar-se no sumptuoso cenário de uma montanha quase deserta, onde o herói vai tentar fugir à sua medíocre condição de empregado sobrecarregado de call-center em pleno esgotamento, e ir ao encontro de uma fada imaginária, Endorfina, tentando várias vezes o suicídio. Mas a busca é difícil e Endorfina não oferece a sua morte doce ao primeiro que aparece...

Poema colectivo
Benoît Delépine é co-realizador de Experiência de Quase-Morte com Gustave Kervern, figuras do humor francês, anticonformistas e contestatários: “É um poema colectivo filmado. Éramos um grupo muito pequeno e pacífico, passávamos horas sem falar no meio daquela montanha magnífica, numa espécie de regresso ao fundamental. Não tínhamos a pressão do sucesso porque queríamos realmente fazer um poema fílmico. Graças à voz off [Michel Houellebecq], o poeta fala. Também queríamos que isso se visse na imagem, e sobretudo não queríamos um olhar clínico sobre o black-out. Mostramos uma busca espiritual que não é religiosa nem está ligada a um qualquer deus, mas etérea, ligeira. O filme chama-se Experiência de Quase-Morte porque Michel Houellebecq brinca, no sentido lúdico, com a morte. Há também uma segunda leitura que ofereço. Ao ler os testemunhos de pessoas que tiveram uma verdadeira experiência de quase-morte e regressaram, vemos exactamente isso: algo muito luminoso, um bem-estar, o passado que volta, anjos, etc. Fizemos uma mistura de todas essas narrativas.”

O filme está marcado por uma tal melancolia e lentidão, e até por uma tal tensão subjacente, que se poderia pensar ser perigoso mostrá-lo a alguém que não estivesse de bem com a vida. “Mas não é esse o caso, de modo nenhum. Tivemos reacções espantosas como: 'Obrigado, isto evitou-me dez anos de psicanálise!' Na altura, a minha mulher teve uma grande depressão e tive medo de lhe mostrar Experiência de Quase-Morte. Mas quando o viu, pelo contrário, recuperou a energia... e, depois, há coisas bizarras: uma enfermeira que cuida de pessoas em estado terminal disse-me: 'Finalmente, vejo falar da morte como a conheço há anos.'”

Houellebecq é claramente a chave do êxito deste momento cinematográfico tão atípico. Não cessamos de nos admirar com as suas capacidades de representação, quando o conhecemos como grande escritor e figura polémica e introvertida até ao mutismo. “É muito fácil conviver com Michel Houellebecq. Sentamo-lo numa pedra e ele é capaz de lá ficar durante duas horas sem se mexer, perdido nos seus pensamentos. Nunca tem caprichos, nunca há tensão. Entre cenas, conversamos. Não é uma pessoa complicada. À noite, tínhamos discussões espirituais. Há uma coisa estranha: eu perdi a minha mãe durante a preparação do filme, o Michel perdeu o pai e Gustave Kervern perdeu uma pessoa próxima durante a montagem. Atravessávamos todos, portanto, uma fase reflexiva. Juntos, naquela montanha, vivemos um grande momento de apaziguamento.”

Esta maleabilidade do escritor tornado actor vai muito longe. É filmado muitas vezes em planos muito próximos e acabamos, afinal, por encontrar beleza no seu rosto telúrico e acabado. Vemo-lo suar, arfar, tossir, vomitar baba, a cara contra o solo rugoso, comendo terra... Benoît Delépine ainda está espantado: “Extraordinário. Há anos que andava a pensar no Michel. Isto teria sido impossível com outro actor. Aliás, tivemos uma recusa de um actor conhecido, para quem era impensável fazer aquelas cenas humilhantes. Com o Michel, em nenhum momento houve a mínima recusa. Nunca se queixou, mesmo nas cenas mais físicas, apesar de fumar muito e de não praticar desporto há 16 anos! Optámos por uma imagem muito granulosa, como a de uma velha câmara, nada da precisão da alta definição de hoje. Em alta definição, seria horrível. Levámos algum tempo a escolher o grão para obter este lado pictórico. O rosto de Michel é espantoso e nele reside o interesse do filme: é desconhecido. Com um actor conhecido, seria cansativo para o espectador vê-lo sempre em grande plano. O Michel, ele, tem graciosidade, é um bailarino.”

Experiência de Quase-Morte estreou-se em França muito antes da recente e estrondosa polémica sobre o último livro de Michel Houellebecq, Submissão, que esta semana é editado em Portugal e que imagina uma França islamizada, com um presidente muçulmano no poder e a xaria como nova lei da república. Não podemos deixar de inquirir Benoît Delépine sobre o assunto. Teria feito o filme após a polémica e as acusações de islamofobia contra Houellebecq, ele, o realizador tão à esquerda? “Esse não é um problema nosso. Veja [Gérard] Depardieu e Putin. Deus sabe que Putin está nos antípodas de tudo o que eu penso e, contudo, também trabalhei com Depardieu. Isso não fere em nada o seu talento. Tanto ele como o Michel são pessoas formidáveis do ponto de vista humano, as mais espantosas do mundo. Faz parte do jogo. Eu, que sou um ateu confesso, fui escrever este filme para um mosteiro em Poitiers, longe do mundo. Quando tive discussões algo espirituais com o Michel, não me parecia estar a falar de religião, mas de ficção científica. Somos ambos fãs de ficção científica. O Michel foi depois para esse mosteiro que lhe recomendei e que encontramos em Submissão. Na verdade, não devemos tomar tudo pelo valor facial.”

Retrato inesperado
Guillaume Nicloux, realizador de O Rapto de Michel Houellebecq, também faz um julgamento severo da acesa polémica que eclodiu em simultâneo com o atentado, em Paris, contra o Charlie Hebdo – que, por funesta coincidência, fazia uma capa fustigando a alegada islamofobia do escritor no dia em que parte da redacção foi assassinada por terroristas. Guillaume Nicloux teria feito exactamente o mesmo filme, sem mudar nada, se o tivesse realizado depois desses acontecimentos: “Não leio a imprensa, não ouço rádio, não vejo televisão. Estou protegido desses excessos habituais. Retrospectivamente, tenho, de resto, a impressão de que tudo isso está esgotado. Tinha a vantagem de ser amigo do Michel há muito tempo e conhecia-o como um homem alegre, cáustico, com sentido de humor – nada a ver com os estereótipos veiculados pela comunicação social. Quis propor uma visão dele mais vasta e, espero, liberta dessa redução mediática. Conheço-o intimamente e, portanto, quis fazer um retrato inesperado dele.”

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Filippov Alexei/ITAR-TASS Photo/Corbis

E conseguiu. Descobrimos um Houellebecq com uma força cómica incrível. Cada uma das suas palavras e das suas atitudes, que julgávamos conhecer de cor pelas aparições na televisão, ganha uma dimensão de comicidade totalmente inesperada, revelando, se tal fosse ainda necessário, a complexidade, a densidade, a multiplicidade do escritor, que neste filme desempenha o seu próprio papel. “O Michel não sabia que conseguia ser tão engraçado. Descobriu-o na primeira projecção mundial, no Festival de Berlim, perante duas mil pessoas. 'Olha, as pessoas gostam de mim porque faço rir...' Era uma coisa nova para ele.”

O Rapto de Michel Houellebecq tem como ponto de partida um acontecimento real datado de 2011, quando o escritor está em plena promoção de um livro. Houellebecq desaparece de um dia para o outro, desencadeando um frenesim mediático e todo o tipo de especulações, algumas absurdas, ao ponto de ver nisso a mão da Al-Qaeda. Os motivos do desaparecimento permaneceram envoltos em mistério e, apesar de Guillaume Nicloux conhecer a verdadeira história, não faz mais que dar-nos a “sua” versão num filme que se diverte a confundir a realidade (com o realismo de um documentário), com o álibi de ser ficção: “Cada um é ele próprio no filme. Há o lutador, o culturista, o estrangeiro, etc. O que me interessa é confrontar universos completamente diferentes e observar a colisão dos pontos de vista, gerar confissões, comicidade. Fujo da 'representação'. Instaurei um clima que permite às pessoas serem elas mesmas e esquecer que estão a fazer um filme.”
No filme, Houellebecq é raptado por três cromos improváveis e sequestrado numa cabana perdida no meio de uma ruralidade sórdida. Desse choque entre mundos nasce uma profusão de situações risíveis e, por vezes, comoventes, com uma obsessão para o escritor: que lhe devolvam o seu isqueiro, pois já não aguenta ter de pedir lume de cada vez que lhe apetece fumar: “Luuuumeeee!!!”, acaba por berrar, de cabelo hirsuto e algemas nos pulsos.

Parece uma evidência uma vez na tela mas, para captar esses momentos hilariantes, hiper-realistas e corrosivos, o realizador utilizou inúmeras estratégias: “É um misto bastante singular de escrita e improvisação. Havia uma estrutura narrativa muito precisa, com um esqueleto cinematográfico tradicional, mas introduzi amplos espaços de liberdade para que o improviso pudesse fluir. Outra técnica consistiu em dar um texto a certas personagens, e não dar às outras. Obtinha assim uma dinâmica variada de onde pudesse resultar a incongruência. Por fim – e isso não se ouve na montagem final, porque o retirei –, dava frequentemente instruções em voz alta durante os takes.”

E, seguramente, também a extraordinária espontaneidade de Houellebecq, que não é um actor profissional: “Trabalhei de forma não convencional, para começar, na ordem cronológica da história. Depois filmava em continuidade e em take único, com quatro câmaras, o que dá um resultado muito impulsivo e naturalista.”

Porém, se O Rapto de Michel Houellebecq é um filme bastante cómico, não deixa de tratar temas profundos e pesados, tal como Experiência de Quase-Morte. Eis um ponto comum, provavelmente inspirado pela personalidade do escritor. Mais uma vez, o palhaço triste. “Tinha vontade de abordar os temas dos meus filmes anteriores: a filiação, a busca existencial. Somos todos fruto do caos, dos danos causados pela família, eu e tantos outros.” Também ele descreve um homem singular, calmo e de trato fácil: “Falamos de coisas das nossas vidas, por vezes muito banais. Entre amigos, fugimos do 'sensacional'. Podemos rir, discutir, falar de tudo. Menos do filme. Nunca falo do filme com as minhas personagens.” Com Houellebecq, pode fazer-se tudo sem que ele se zangue.

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Benoît Delépine e Gustave Kervern, figuras do humor francês, anticonformistas e contestatários, realizadores de Experiência de Quase-Morte dumas

Mesmo estar realmente bêbedo quando interpreta uma personagem embriagada (pois bebe e fuma sempre muito neste filme)? “[Risos] Bem, sim, é o que é divertido no pressuposto do filme: fuma-se droga, bebe-se, conduz-se depressa, fazem-se coisas proibidas. Há as cenas de amor com Fatima. Vivemos realmente no meio mais mentiroso do mundo. É prático, o alibi da ficção, porque mesmo que o tenhamos feito de verdade, podemos sempre dizer que não era...”

Ninguém pode prever que êxito terão estas obras excêntricas. Em primeiro lugar, porque saem ao mesmo tempo, com a aposta numa pedra angular absoluta que é o único Michel Houellebecq, personalidade que tanto fascina como choca. Depois, porque o público só se desloca maciçamente quando lhe dão o que está habituado a receber, e aqui são-nos propostos dois objectos singulares. Por último, porque eles se querem intimistas, de pequeno orçamento – e, no entanto, tão ricos de revelações sobre o escritor e sobre as nossas vidas. Não obstante toda a vontade dos seus realizadores de revelar um rosto mais autêntico que a sua imagem mediática falseada, o espectador sairá da sala maravilhado, mas perguntando-se ainda – e poderia ser de outro modo? – quem é Michel Houellebecq.

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