Francisco Assis não tem razão

Vivemos em Portugal, um país que passou metade do século XX sob ditadura e onde a cultura da deferência ainda é muitíssimo mais forte do que a suposta cultura da abjecção que Francisco Assis e Miguel Sousa Tavares tanto insistem em combater.

Francisco Assis escreveu um texto em contracorrente na passada quinta-feira, a propósito das listas VIP. No seu entender, anda por aí à solta uma “nova inquisição de natureza eminentemente populista”, e a forma como o país abordou o tema é revelador do “verdadeiro estado de saúde mental e moral de uma sociedade”. A tese central de Assis é que se estabeleceu uma “confusão entre o valor primacial da igualdade e a sua forma degenerada que constitui o igualitarismo”, retomando, aliás, um texto de Miguel Sousa Tavares no Expresso, onde este afirma explicitamente ser a favor da lista VIP.

Segundo Miguel Sousa Tavares, nenhum jornalista do Correio da Manhã “está interessado em saber qual a situação fiscal do Zé dos Anzóis”, ao passo que está muito interessado em saber qual a situação fiscal dos contribuintes mais mediáticos. Donde, estes devem ser mais protegidos. O raciocínio parece lógico, mas imagine-se por um momento que o Zé dos Anzóis anda enrolado com a Maria do Mar, que, por sua vez, é casada com o Manel das Finanças. Nesse caso, o Manel das Finanças pode ganhar um súbito interesse na vida tributária do Zé dos Anzóis que tem tanto direito ao sigilo fiscal como o primeiro-ministro. Na verdade, até tem mais, na medida em que não exerce qualquer cargo público.

É por isso que a solução para este caso nunca poderá passar pela elaboração de uma qualquer lista VIP, mas sim por regras restritas de acesso, que protejam tanto o primeiro-ministro como o Zé dos Anzóis. Até porque, em termos práticos, seria impossível definir quem entraria nessa lista VIP e quem ficaria de fora. Políticos, artistas, desportistas, empresários, jornalistas não se vislumbra qualquer espécie de critério atendível para a construção da lista, até porque a esfera mediática modifica-se a tal velocidade que ela seria um perpétuo rodopio de nomes.

Mas a razão essencial que me leva a discordar profundamente de Francisco Assis e Miguel Sousa Tavares não é, sequer, a impraticabilidade do empreendimento é o facto de eles estarem a falar de um país que eu não reconheço. Se Assis e Sousa Tavares vivessem em Inglaterra rodeados pelas publicações do senhor Murdoch, com uma sociedade civil forte e cada vez mais intrusiva, onde o News of the World se atreveu até a colocar os telefones da realeza sob escuta, eu poderia perceber as suas objecções. Mas nós vivemos em Portugal, um país que passou metade do século XX sob ditadura e onde a cultura da deferência ainda é muitíssimo mais forte do que a suposta cultura da abjecção que Francisco Assis e Miguel Sousa Tavares tanto insistem em combater.

Onde é que está esse temível papão populista, afinal? Ambos falam em “terror mediático reinante”, e aquilo que eu vejo é uma comunicação social cada vez mais frágil e dependente. Assis fala na “consagração de uma espécie de voyeurismo universal” e aquilo que eu vejo é um caso BES dominado pela absoluta opacidade, onde a falta de escrutínio descambou em tragédia. E quanto às críticas em relação “à devassa implacável de dimensões privadas” dos “decisores políticos”, nem sei bem por onde comece talvez por relembrar que o penúltimo primeiro-ministro português está preso por suspeitas de corrupção no exercício do cargo? Em bom rigor, não é que os textos de Francisco Assis e Miguel Sousa Tavares não estejam bem argumentados e excelentemente fundamentados. Estão, com certeza. Escapou-lhes apenas este pequeníssimo detalhe: o país de que eles falam não é Portugal.

Jornalista; jmtavares@outlook.com

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