A memória do mito

O Livro de Jón, do que islandês Ófeigur Sigurdsson, é uma cartografia afectiva, em registo epistolar, que atravessa o desespero silencioso da condição humana

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O Livro de Jón venceu o Prémio da União Europeia para a Literatura

Corre o Inverno do ano de 1755, e o reverendo Jón Steingrímsson chega com o irmão ao lugar de Myrdalur.

A terra começa aos solavancos, a endurecer e a amolecer por turnos, e pela encosta deslocam-se estranhas ondas. O grande vulcão Katla liberta fogo e cinzas, como se chovesse uma tinta espessa sobre o lugar de Myrdalur, no sul da Islândia. A escuridão que o vulcão verte sobre eles parece-lhes um castigo divino. Têm ambos de se abrigar fora da pequena cidade, numa pequena gruta aberta há mil anos por monges eremitas islandeses que ali viveram antes de os vikings habitarem o país. Na paisagem em redor, em ramos nus de antigas árvores, podres e geladas, pousam corvos que parecem grasnar velhos cânticos fúnebres. Os dois homens parecem querer aventurar-se em descobrir quanto sofrimento é que afinal o coração humano consegue suportar. É neste cenário selvagem e violento que o escritor islandês Ófeigur Sigurdsson (n. 1975) – também conhecido poeta – coloca a história narrada no romance epistolar O Livro de Jón (vencedor do Prémio da União Europeia para a Literatura). Composto por 28 cartas escritas pelo reverendo Jón à mulher, nele se descreve aquela singular atmosfera de elementos naturais ferozes e opressivos, de uma Natureza não subjugada pelo Homem (de fogo e de vento, de gelo glaciar e de rios indomáveis), e tão característica da Islândia, característica de um tempo que nos remete sempre para a memória lírica do mito, para um tempo dominado por uma sombria e avassaladora solidão.

O reverendo Jón Steingrímsson é uma personagem real cuja vida aparece descrita em crónicas islandesas do século XVIII, e que ficou conhecido na memória colectiva do país pelo “reverendo do fogo” devido a, reza a lenda, durante a violenta erupção de um vulcão, em 1783, e estando a população local sem hipóteses de escapar à corrente de lava refugiada na igreja, o sacerdote saiu para a rua e, a poucos metros do templo, como por milagre, a lava parou e toda a população foi poupada à morte. Mas Ófeigur Sigurdsson escolheu para o romance uma outra narrativa, a do episódio dos rumores (que se tinham “tornado mais agressivos e intensamente opressivos”) que caíram sobre o reverendo Jón, quando este tinha 27 anos de idade, de ter assassinado o anterior marido da mulher, e da consequente expulsão do mosteiro. O sacerdote foi por isso obrigado a deixar a mulher, sozinha e grávida, numa vila algures no norte da ilha, tendo ido procurar com o irmão um lugar onde pudessem viver livres das acusações, e prometendo ir buscá-la depois do nascimento do bebé. “Mandar-te-ei buscar quando o Inverno terminar, quando uma quinta tenha sido criada e quando os proventos forem assegurados, assim Deus o queira; quando a criança tiver entrado no mundo e tiverem ambas saúde suficiente para a viagem; quando o Katla estiver em silêncio e o tempo, suportável.”

Nas cartas escritas à mulher, o reverendo Jón é a imagem da tenacidade e da obstinação num futuro melhor, apesar das descrições quase apocalípticas do que sucede à sua volta – inundações, trevas, gás sufocante, chuva de cinza – e que por muitos dias o impedem de sair da gruta. A obstinação da personagem parece algo que ficou das histórias míticas dos heróis das sagas. A tenacidade é descrita através de uma natureza hostil, de enormes paisagens desoladas, austeras e terrivelmente frias, que os homens enfrentam rudemente quase até à exaustão. O frio, a escuridão, as tempestades, o vento e o mar árctico, parecem acompanhar todos os pensamentos da personagem, num coro trágico que não cessa de evocar a inevitável desolação da existência, a irremediável solidão dos homens.

Ófeigur Sigurdsson é visivelmente herdeiro das narrativas épicas de Halldór Laxness, mas muito mais perto ainda de Thor Vilhjálmsson (Arde o Musgo Cinzento, Cavalo de Ferro, 2011) que na literatura islandesa acaba por cristalizar a longa tradição nórdica ao mesmo tempo que lhe inventa novas roupagens, fundindo, para isso, elementos da mitologia escandinava com outros de carácter contemporâneo. A estratégia epistolar adoptada para este romance, acabou por ser um pouco subvertida na sua função, que é (para além de estilística) sobretudo devedora de um certo intimismo; Sigurdsson, parecendo não saber bem o que fazer com algumas descrições e narrativas curtas, acabou a juntar tudo nas cartas e a perturbar um pouco a expectativa do leitor quanto às mesmas.

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