A lei

Se um dia os altos servidores do poder político forem convocados como arguidos ou acusados não aparecerão no drama judiciário afivelando de novo a máscara do papel que temporariamente representaram no agónico drama político.

1. A benefício de transparência, este escrito foi motivado pelo debate público suscitado pelo processo criminal em que é arguido o Engenheiro José Sócrates, antigo Primeiro-ministro. Mas não é um escrito sobre o processo, orientado para a discussão das suas vicissitudes, menos ainda para tomar posição nas querelas que suscita.

Não foi pensado contra ou a favor de ninguém, apostado em reforçar ou infirmar nenhuma das teses que se confrontam no processo. Poderia ser elaborado mesmo que não existisse processo. Só por leviandade ou estultícia poderia ser de outra maneira, tratando-se de um processo sobre factos e com incidentes endógenos que não conhecemos minimamente. Tal estaria, de resto, vedado por inultrapassável imperativo categórico de índole ético-deontológica: um académico não deve pronunciar-se publicamente sobre um processo em curso, contribuindo para trazer o julgamento para a praça pública, para um perverso trial by newspaper em detrimento do legítimo trial by court.

As reflexões que partilhamos têm um objecto único e exclusivo: a lei. E como é próprio da lei e da leitura da lei, elas situam-se ao nível categorial e abstracto dos conceitos, dos princípios e dos problemas. As conclusões subscritas são alcançadas em termos de objectividade e distanciação, postas entre parênteses as concretas situações segregadas pela vida. Trata-se, em definitivo, de um contributo — modesto e aberto à força de melhor argumento — para a clarificação da norma atinente à competência do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) para julgar os titulares dos lugares de cúpula da organização Constitucional: Presidente da República, Presidente da Assembleia da República e Primeiro Ministro (PR/PAR/PM). Exercício que empreendemos como irrenunciável direito de cidadania e participação e resposta ao apelo da responsabilidade e do compromisso com a causa e a coisa pública.

2. Por compreensíveis razões de método, começaremos por convocar a lei, tomada directamente pelo seu valor facial, pela expressividade imediata das palavras com que se tece o texto normativo. Para, num segundo momento, sindicar criticamente o significado das palavras à contraluz da intencionalidade político-criminal, dos valores, dos interesses e dos conflitos que à lei cabe superar.

Em tese, a lei poderia alcançar o seu objectivo privilegiando uma entre várias formulações possíveis, correspondentes a outras tantas alternativas de técnica legislativa. Soluções normativas distintas entre si, a projectarem-se em consequências prático-jurídicas diferenciadas e centrífugas. Atendo-nos a duas das soluções possíveis, a lei pode prescrever: a) que o STJ julga o PR/PAR/PM pelos crimes praticados no exercício das suas funções; b) em alternativa, que o STJ julga os crimes cometidos por aqueles ou outros expoentes do Estado. As diferenças normativas e prático-jurídicas são mais pronunciadas do que parece sugerir a (aparentemente) pequena diferença de formulações verbais.

A primeira formulação perspectiva o PR/PAR/PM como o complemento directo da frase que tem o verbo julgar como predicado. Por vias disso, a hipótese normativa (a constelação fáctica sobre a qual a lei verte direito) desdobra-se em dois momentos ou pressupostos necessários. Só a concorrência cumulativa de ambos determinando a competência do STJ. Pela natureza das coisas, é uma solução adequada para os titulares transitórios das funções que determinam um foro especial. E foi precisamente essa a solução adoptada pela lei portuguesa vigente (art. 11º/3 do CPP) para determinar a competência do STJ para julgar o PR/PAR/PM. Para que o STJ seja competente, há-de, em primeiro lugar, estar em causa alguém que seja PR/PAR/PM (categoria e conceito em que não cabe alguém que seja ex-PR/PAR/PM); em segundo lugar que se trate de crimes praticados no exercício de funções.

O quadro é significativamente outro na formulação alternativa, segundo a qual o STJ julga os crimes praticados pelos titulares de elevadas funções no Estado. Agora, a hipótese normativa é preenchida por um único pressuposto: a exigência de que em causa estejam crimes, qualificados pela circunstância de terem sido praticados por agentes com determinado estatuto. Silenciando a lei a referência ao estatuto do respectivo arguido ao tempo do julgamento. Pela natureza das coisas, uma solução indicada para definir o regime processual-penal dos titulares “perenes” ou vitalícios do estatuto que justifica o privilégio de um foro específico. E foi precisamente essa a solução adoptada pela lei vigente (art. 11º/4 do CPP) ao determinar que os crimes cometidos pelos Magistrados dos Tribunais Superiores são julgados pelo STJ. Cuja competência se estende a todos os crimes cometidos por estes Magistrados, independentemente de continuarem no exercício activo de funções ou de entretanto se terem jubilado. Precisamente porque eles levam consigo a máscara, as insígnias e o estatuto de Magistrados e é com eles que continuam a representar no rito processual-penal.

3. Voltando aos titulares dos lugares cimeiros do poder político democrático, só será julgado pelo STJ o arguido que é — não o que foi — PR/PAR/PM. É o que decorre — linearmente, a nosso ver — das palavras escolhidas pelo legislador para dar rosto e voz à lei, como veículo de comunicação. Na certeza de que esta leitura, colhida na letra da lei tem também por si a força convergente das razões e argumentos de índole material que emprestam à lei a indispensável legitimação material. Não pode, desde logo, acreditar-se que a solução consagrada traga consigo a contingência e plasticidade que são as marcas do direito positivo. Pelo contrário: é assim e dificilmente poderia ser de outra maneira. Não porque a lei reproduza uma qualquer natureza das coisas ou, como pretendiam os filósofos gregos anteriores a Protágoras, a ordem cósmica. Mas porque nela se espelha o núcleo irredutível e indisponível da ideia democrática. Que se desdobra em axiomas tão densificados de sentido e de implicações como o princípio de igualdade e, noutro plano, o princípio republicano.

O primeiro, a impor um tratamento igual de todos perante a lei penal. Apenas consentindo as excepções ditadas pela particular eminência das funções exercidas pelos respectivos beneficiários. Como o privilégio de ser julgado pelo STJ. Excepções que, como “irritações” da igualdade, devem circunscrever-se ao mínimo estritamente necessário. Em todas as dimensões, designadamente na dimensão temporal, não devendo prolongar-se para além do termo do exercício das funções cuja consideração determina aquele foro especial. Isto é, o momento a partir do qual aqueles que foram titulares dos lugares cimeiros da arquitectura do Estado democrático deixam de o ser. E retomam o seu lugar na ágora, com a dignidade que lhes empresta a igualdade com o cidadão comum.

Tudo em consonância com o ethos republicano. Segundo o qual os que são chamados ao exercício destas funções, no fim regressam a casa despojados dos estigmas do poder e sem outras credenciais de dignidade e respeito para além dos seus méritos intrínsecos. Ao contrário do que tendia a acontecer na tradicional organização monárquica, os altos servidores do poder político republicano não ficam, a nenhum título, ungidos para sempre. O que vale sobremaneira para o processo penal: se um dia forem convocados como arguidos ou acusados não aparecerão no drama judiciário afivelando de novo a máscara do papel que temporariamente representaram no agónico drama político. Mas com o rosto descoberto da pessoa que sempre foram no “Grande teatro do mundo”: cidadãos iguais, entre cidadãos.

4. É assim que dispõe a lei. E felizmente que é assim. Como, há mais de 25 séculos proclamava Péricles, na oração fúnebre sobre os restos mortais dos primeiros atenienses mortos na Guerra do Peloponeso, são leis como estas que dão direito ao nome de democracia.

Professor da Faculdade de direito de Coimbra

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