O suicídio como meio de sobrevivência

Um texto de Jean-Pierre Sarrazac em estreia mundial no Porto que o confirma como importante destino teatral europeu.

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TUNA/TNSJ

Todos as semanas é publicada uma lista em que Porto, Lisboa e as aldeias mais portuguesas de Portugal aparecem como um dos melhores destinos do mundo, para consolo do ferido orgulho nacional.

Enquanto uma parte da população se afunda, devagar, abaixo do nível de pobreza, outra parte desce para o baile, e pede só mais uma música à orquestra. De um lado a fome, do outro a festa. O país está exposto à dívida, à austeridade, ao desemprego. O retrato do país, esse, está sobre-exposto: à propaganda, às relações públicas, ao entusiasmo do marketing político.

O Fim das Possibilidades retrata como essa separação é possível ou, aliás, indispensável. A maior parte das personagens desta peça faz fé nas promessas alheias. Não há outra possibilidade. São poucos os que se juntam para contrariar o rumo dos acontecimentos. A maior parte confia que as coisas já estão a melhorar. Deus permite a Satanás que concentre os incapazes noutro lugar, desde que não os extermine à vista de todos, com falsas promessas. Job, ou JB, que antecipa a jogada, opta por se suicidar como último acto de resistência, preferindo manter a dignidade a deixar-se degradar aos poucos até cair na escravidão, mesmo que voluntária.

Sarrazac põe o dedo na ferida quando retrata o desempregado como um morto-vivo, e a maior parte das pessoas, palpito eu, não poderá deixar de se identificar com a estratégia de resistência, agressivo-passiva, que JB adota, entre uma e outra golada de whisky, e mais um copinho de vinho, para passar a perna ao destino.

A urgência artística, cultural e política deste espectáculo torna-o um destino obrigatório, este sim, para os espectadores de teatro. Não é que esses aspectos caucionem a criação teatral. É que o espectáculo — além de excelente nas suas diversas componentes, da luz ao som, passando pela cenografia e pelos figurinos, sem esquecer as actuações individuais e em conjunto — tem esse alcance. A peça é riquíssima e a encenação não lhe fica atrás, ambas revelando domínio da tradição, por um lado, e exploração do que há-de ser, por outro. A familiaridade súbita com as figuras, a acção, as metáforas e a estrutura da peça fazem com que Jean-Pierre Sarrazac se revele, passe o exagero, um verdadeiro autor português de expressão francesa.

Levar à cena esta peça é falar de corda em casa de enforcado. Os artistas têm sido uma das classes mais castigadas pela doutrina do capitalismo dos últimos dias, por um lado, e têm servido inúmeras vezes de flor na lapela dos oficiantes desse culto.

O Fim das Possibilidades apresenta-se em estreia mundial, no Teatro Nacional de São João, membro da União dos Teatros da Europa, fazendo prova do seu lugar no conjunto dos teatros europeus. O lugar na lista dos melhores destinos é mais do que merecido.

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