"É insensato dizer que os credores nunca serão penalizados"

Lee Buchheit, advogado especialista em reestruturações de dívida soberana, avisa que quando as taxas de juro voltarem a subir o tema dos perdões de dívida na zona euro pode voltar ao centro do debate.

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Lee Buchheit: “A dívida não se evaporou, ela simplesmente migrou das mãos dos credores para os contribuintes” Público

Se há alguém de quem os hedge funds que investem em obrigações de países em crise não querem ouvir falar é de Lee Buchheit. Há trinta anos que este advogado norte-americano, da firma Cleary Gottlieb, representa Estados em aperto financeiro que querem reestruturar as suas dívidas. A sua função, por isso, tem sido a de maximizar as perdas que os credores sofrem, em benefício dos cofres públicos quase vazios dos seus clientes. Entre outros , já defendeu os interesses do Estado russo, mexicano, coreano, filipino, iraquiano e islandês. Em 2012, esteve na Grécia a colaborar na única reestruturação de dívida feita na zona euro.

Num artigo publicado em 2013 no Financial Times, um advogado de uma firma rival dizia sobre Lee Buchheit Times que este “é admirado por muitos e detestado por alguns, há quem ache mesmo que ele é o diabo reencarnado”. De visita a Lisboa na semana passada para participar na Conferência “O futuro da dívida soberana na Zona Euro”, organizada pela Católica Global School of Law, Lee Buchheit explica porque é que os Estados, por vezes, têm de reestruturar a sua dívida.

Parece que criou alguns inimigos ao longo da sua carreira…
Inevitavelmente. Aquilo que fiz nos últimos trinta anos, reestruturando dívida soberana em todo o Mundo, torna isso inevitável. Uma reestruturação de dívida é uma experiência bastante desagradável para um credor e também é uma experiência desagradável para o devedor e para os cidadãos do país devedor. Implica reduzir os pagamentos, adiar pagamentos, reduzir juros. As pessoas vão ficar descontentes? Sim, de vez em quando, mas essa é a natureza deste tipo de situações. Quando o Estado ou qualquer devedor não consegue pagar aquilo que deve, não tem outra escolha que não seja a de reestruturar. Essa citação não me surpreende, pelo contrário, ficaria surpreendido se fosse diferente.

Deve ter advogados difíceis do outro lado, a litigar contra si.
Sim, sem dúvida. Os credores contratam os melhores conselheiros que podem. Por isso, é uma tarefa difícil. Mas quando as coisas são feitas do modo certo e toda a gente se porta profissionalmente, não há quaisquer ataques pessoais A maior parte das pessoas que trabalha neste campo respeitam-se umas às outras.

Porque é que escolheu ficar do lado dos Estados que querem reestruturar a dívida e não do lado dos credores?
Porque é muito mais divertido. O objectivo de um credor é apenas o de ser pago o máximo e o mais rápido possível. É um objectivo bastante básico. Para o Estado devedor, não. É preciso levar em conta os cidadãos, a reputação com que o país fica após a crise e as consequências geopolíticas. É muito mais interessante e complexo.

E o jogo político que os Governos também têm de jogar, não o incomoda?
Não, pelo contrário. Até gosto. E o que é mais fascinante é como os países são tão diferentes uns dos outros na forma como encaram este tipo de crises. Por exemplo, lembro-me de na Coreia do Sul, em 1997, foram colocados receptáculos nas ruas, as pessoas passavam e deixavam lá os anéis de casamento. Porquê? Porque sentiam que era uma vergonha tão grande o país não conseguir pagar as suas dívidas que achavam que tinham de dar as suas próprias jóias para tentar resolver o problema. E depois há outros países, onde francamente, tudo parece um jogo. De anos a anos entra-se em default e renegoceia-se. É mais popular que futebol.

E a zona euro como é que é? Em 2010, recusou-se uma reestruturação na Grécia, mas que acabou por ser feita em 2012…
Houve uma enorme resistência na Grécia, na Primavera de 2010, a reestruturar a dívida. Por três razões. Primeiro havia medo de contágio, de que se reestruturasse a dívida grega e os investidores em Portugal, Itália, Espanha começassem a questionar-se se não podia acontecer também nesses países e retirassem o capital. Claro que agora sabemos que o contágio acabou por acontecer, mesmo sem reestruturação. O segundo motivo foi que a maior parte dos títulos de dívida gregos eram detidos por bancos do Norte da Europa. Por isso, reestruturar as obrigações gregas provocaria um drama nos bancos alemães, franceses e holandeses. Os Estados poderiam ter de intervir para recapitalizar esses bancos. Era mais aceitável do ponto de vista político emprestar o dinheiro à Grécia para que ela pudesse pagar as suas dívidas aos bancos do que seria ter de recapitalizá-los. O terceiro motivo – e esta era a visão do BCE – era que a união monetária europeia ainda estava numa fase inicial e se se deixasse um dos Estados membros fazer uma reestruturação poder-se-ia manchar de forma indelével o próprio euro, ao ponto de as pessoas deixarem de querer ter euros.

O que é que mudou em 2012?
O problema é que, no Verão de 2011, já era absolutamente claro que a dívida grega era insustentável e que uma reestruturação de dívida era inevitável. E a consequência da recusa anterior em reestruturar foi que entretanto se pegou no dinheiro dos contribuintes e emprestou-se a estes países para pagar por inteiro e a tempo aos detentores dos títulos de dívida. A dívida não se evaporou, ela simplesmente migrou das mãos dos detentores de obrigações para os ombros dos contribuintes. E foi quando isso ficou claro para a opinião pública, que se passou em 2012 de uma política em que uma reestruturação era recusada para uma política em que uma reestruturação era ordenada, com um corte nominal da dívida de pelo menos 50%. No final foi 53,5%.

E acredita que a Grécia vai continuar a ser caso único?

O que foi dito na altura era que a Grécia era “única e excepcional”. Eu acredito que sim e que vai continuar a ser, até ao ponto em que surja um outro caso “único e excepcional”.

Entretanto na Grécia, uma nova reestruturação no sector privado já não resolve nada.
Em Maio de 2010, havia 300 mil milhões de euros de dívida grega nas mãos do sector privado. Agora têm 30 mil milhões. Ou seja, 90% dessa dívida ou foi paga ou reestruturada. O stock de dívida total não ficou mais pequeno, antes pelo contrário. O que aconteceu é que os credores agora estão no sector oficial, é o FMI, são os parceiros europeus. São eles que agora têm de discutir uma reestruturação. Isto é, uma reestruturação talvez caótica com o sector privado foi evitada em 2010 à custa de uma discussão política talvez ainda mais caótica em 2015 sobre a reestruturação, que é o que temos agora.

A Grécia parece estar com problemas de tesouraria. Qual seria o impacto de um default acidental na dívida grega durante as próximas semanas?
Depende de quão acidental seria, mas pode ser grave. Espero que cheguem a um acordo e as tranches dos empréstimos do FMI e EU possam chegar à Grécia e consigam evitar esse cenário.

Acha provável que um país como Portugal, com a dívida que tem, possa ter de vir a efectuar uma reestruturação de dívida no futuro?
O risco está em que todos os países desenvolvidos, incluindo Portugal, têm agora uma dívida acumulada que é muito maior do que era há cinco ou seis anos atrás. A dívida pública média na zona euro em 2007 estava próxima de 60% do PIB. Agora é de 93%. Como é que se consegue suportar isto nesta fase? A resposta é: taxas de juro a zero. Os bancos centrais têm mantido uma política de taxas de juro quase nulas durante os últimos seis anos, por isso o encargo corrente com essa dívida não é tão oneroso. Imagine o que aconteceria se os países tivessem de suportar o encargo desta dívida se as taxas de juro se aproximarem da média histórica que é mais próxima de 5%. Isso retiraria fundos de outras funções do Estado, sejam as pensões, a educação ou a saúde, de uma forma que causaria problemas a nível social. As taxas de juro zero não vão durar para sempre.

E aí, o debate sobre a reestruturação de dívida voltará em força como tema?
É provável. Eu vejo que toda a gente, espera que não, mas é provável.

Qual é que acha que deve ser a atitude de um país em relação a uma reestruturação? Encará-la como uma vergonha que se deve evitar a todo o custo ou vê-la como um processo que se pode repetir diversas vezes? Ou alguma coisa no meio?
Um país quando pede dinheiro emprestado, deve fazê-lo com a expectativa completa de que terá de o devolver. Não se consegue ter um sistema financeiro funcional a não ser que um investidor tenha um compromisso forte de que vai ter de volta o dinheiro que emprestou. Dito isto, há coisas más que acontecem na vida. Aos indivíduos, às empresas e aos Estados. Haverá alturas em que um Estado não pode efectivamente pagar aquilo que deve, a não ser que transfira recursos de outras funções de uma maneira que quebra o pacto social existente. E todos, sejam os credores sejam os Estados, devem perceber isso. Confrontados com esse tipo de situação, os Estados não têm outra opção que não seja pedir um alívio aos seus credores.

E um país não deve sair penalizado por políticas erradas do passado?
Um país nessa situação vai ter sempre de aplicar austeridade aos seus cidadãos. Por isso, eles darão o seu contributo. Mas algumas vezes isso precisa de ser acompanhado por uma contribuição dos credores. Quando o FMI chega um país, o que faz quando aplica a receita da austeridade é colocar o encargo nos ombros de uma das partes. Às vezes é preciso que a outra parte também contribua. É tão insensato dizer que os credores nunca vão ser tocados, como seria dizer que os credores vão sempre correr todos os riscos e nunca haverá um ajustamento orçamental. Há duas partes interessadas e ambas não podem fugir à responsabilidade de resolver este tipo de problemas.

Depois do que aconteceu com a derrota da Argentina nos tribunais norte-americanos, os países estão menos seguros face aos credores no caso de uma reestruturação de dívida?
O que a Argentina mostrou é o risco que constituem com os credores que se recusam a aceitar uma reestruturação. Não há nenhum código de falências dos Estados que possa forçar um credor a aceitar uma reestruturação e tem sido feito um grande esforço desde 2002 para tentar encontrar formas de garantir que uma supermaioria dos credores, através de uma decisão maioritária mas não unânime, possa forçar todos os credores a uma decisão. Porque se nem todos os credores ficam forçados a aceitar a reestruturação isso constitui, não só um risco para o Estado, como também para os outros credores. Assistiu-se a isso na Argentina no último ano. Os credores que não aceitaram a reestruturação conseguiram nos tribunais uma decisão que impede a Argentina de pagar aos seus outros credores. Eu penso que os mercados perceberam que um poder demasiado grande dos credores que não aceitam a reestruturação constitui uma ameaça para todo o mercado.

De que forma é que isso pode ser resolvido?
O FMI tentou logo em 2002 criar um código internacional para as falências dos Estados. Isso não deu resultado. Mas depois têm sido aplicadas as chamadas  cláusulas de acção colectiva (CAC), que são contratos que impõe a aceitação de uma reestruturação por todos os credores se uma maioria deles (habitualmente 75%) votar favoravelmente. Isto está a ser muito usado. É raro encontrar um título de dívida pública sem CAC. Na Europa, os ministros da Zona Euro decidiram em 2013 que são obrigatórios.

E resolve o problema?
Não completamente, mas ajuda. As CAC têm que ser aplicados a cada uma das séries de dívida. E especialmente em mercados pequenos é especialmente fácil para um grande investidor assegurar uma posição de bloqueio. Compra-se 26% desses títulos e fica-se com a certeza absoluta que a CAC nunca irá ser usada. Em 2012, o que a Grécia fez foi aproveitar o facto de 93% da dívida grega ser regulada pela lei grega, o que permitiu que o Governo aplicasse retroactivamente uma CAC global para todos esses 93% de dívida, o que significou que se dois terços dos credores aceitassem uma reestruturação, esta seria aplicada a todos. Mas ao mesmo tempo, os 7% que faltavam eram 36 emissões de dívida reguladas pela lei britânica, cada uma delas com a sua própria CAC. A Grécia marcou reuniões com cada um do grupo de credores e apenas 17 aceitaram a reestruturação. No resto, havia investidores com posições de bloqueio. Os investidores mudaram a sua forma de actuar. Antes diversificavam, comprando um pouco de cada título, mas agora, se estiverem a pensar bem, concentram as suas compras em poucos títulos por forma a ficarem com uma posição de bloqueio. E eles geralmente pensam bem.

Emitir com regulação de legislação estrangeira é mais perigoso, como fez a Argentina?
A maior parte da dívida dos Estados da zona euro euro é regulada pela lei dos próprios países, o que significa que numa futura crise, os parlamentos podem tomar uma medida semelhante à do parlamento grego em 2012 e aplicar retroactivamente uma CAC. Não pode fazer para as obrigações reguladas por Londres ou Nova Iorque. Por isso, os Estados europeus estão mais seguros face aos credores do que estava a Argentina. Os países emergentes sempre tiveram mais dificuldades em realizar emissões reguladas pela sua própria lei porque os investidores internacionais dizem-lhes que têm de ir para Nova Iorque ou Londres para que a dívida seja comprada.

Portugal recentemente fez uma emissão em dólares. Corre mais riscos no caso de querer um dia fazer uma reestruturação?
A emissão também terá uma CAC, pelo que pode ser accionada e não será preciso convencer todos os investidores, basta convencer 75%. Mas claro que existe o risco de algum investidor ter em seu poder 26% dos títulos.

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