França quer começar a lutar contra o terrorismo nos bancos da escola

Educar os imãs para criar um islão que seja francês e não estrangeiro, inculcar às crianças e adolescentes os valores do seu país e combater as desigualdades – esta é a receita do Governo Valls pós-atentados de Paris. Mas tudo tem de se fazer com pouco dinheiro.

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O Governo francês quer fazer “uma grande mobilização da escola para os valores da República” ANNE-CHRISTINE POUJOULAT/AFP
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O ministro do Interior, Bernard Cazeneuve, quer criar um novo organismo de diálogo com a comunidade muçulmana ANNE-CHRISITINE POUJOULAT/AFP

"Je suis Charlie”, disse-se pelo mundo inteiro após o choque dos atentados terroristas de Paris em Janeiro que fizeram 17 mortos. No entanto, em muitas salas de aula francesas, jovens de religião muçulmana não se juntaram ao minuto de silêncio decretado pelo Presidente François Hollande, em memória dos mortos. “Porquê homenagear as vítimas do Charlie Hebdo e não fazer um minuto de silêncio pelos palestinianos ou por África?”, perguntaram aos professores. Outros levaram crachás a dizer “eu sou Al-Qaeda”, ou algo igualmente chocante.

As páginas dos jornais e as televisões encheram-se de professores ansiosos, sem saber como reagir a estes confrontos – a ministra da Educação, Najat Vallaud-Belkacem, reconheceu terem-se registado pelo menos 200 incidentes desde género em todo o país. E não foi só no dia do minuto de silêncio. Mesmo após as manifestações de sábado, 11 de Janeiro, encaradas como a grande demonstração de um espírito de unidade nacional, muitos adolescentes voltaram à escola, na segunda-feira, com vontade de discutir o caso com os professores, dizer-lhes que não acreditavam que as coisas se tinham passado tal como o Presidente, o primeiro-ministro, os jornais e a televisão estavam a contar…

“O minuto de silêncio tinha sido contestado em todas as aulas”, contou ao Le Monde Seta Kilndjian, professora que dá aulas a alunos de 14 e 15 anos no Norte de Marselha, onde se concentra uma população pobre e muçulmana. “Mas na segunda-feira, os alunos voltaram com os punhos cerrados. Ainda antes de me dizerem 'bom dia', deram-me a entender que não estavam de acordo, que as imagens dos atentados eram uma montagem…”

A ideia que pairava, entre muitos jovens daquela cidade, como Abdel Assani, de 20 anos, era a de que tinha havido uma grande montagem. “Esta história é uma conspiração. Um complô para sujar a imagem dos muçulmanos”, disse ao diário francês. As redes sociais, a Internet, são a fonte que alimentou as suas suspeitas. Ryan, de 13 anos, viu e reviu um vídeo na Internet que afirmava revelar as provas de que tudo tinha sido uma conspiração: “Vi-o muitas vezes, e o que perturba, é que não havia sangue, quando os atiradores [do Charlie Hebdo) dispararam contra o polícia…”, contou ao Le Monde.

Aprender a República
Perante estas reacções, amplamente divulgadas, a acção na escola, tornou-se uma prioridade para o governo socialista de Manuel Valls. A educação para a integração é uma arma para a luta contra o inimigo difuso que é a ameaça terrorista. O objectivo é fazer “uma grande mobilização da escola para os valores da República”, nas palavras da ministra da Educação, capaz de detectar e evitar a radicalização dos jovens.

Os professores transformam-se em vigilantes, que devem estar atentos aos sinais de alerta, descritos num folheto editado pelo Ministério da Educação, que inclui a manifestação pelos alunos de “opiniões anti-sociais virulentas ou violentas”, “novos comportamentos alimentares ou de vestuário”, ou “absentismo”, entre outros.

Como um dos valores fundamentais da República é a secularidade – entendida como a neutralidade do Estado face às práticas das várias religiões, embora vigore a liberdade religiosa – os professores vão receber uma formação especial para saberem transmitir esse valor, que muitas vezes gera conflitos. Por exemplo, nos últimos dias, tem sido notícia vários confrontos em universidades entre professores e alunas que cobrem o cabelo com o lenço islâmico. Embora nenhuma lei as impeça de o fazer, alguns professores, nestes tempos conturbados, sentem-se insultados. Mas os jovens universitários ripostam.

Para ajudar os professores a lidar secular e correctamente com o facto religioso – e a ministrar o novo programa das aulas de educação cívica e moral, que será alterado a partir do próximo ano lectivo, foram mobilizados mil formadores para darem formação a 300 mil professores. O dia 9 de Dezembro, aniversário da lei de 1905 que estabeleceu o Estado francês como laico, passa a ser comemorado.

O Presidente François Hollande, por seu turno, anunciou que se vai tornar quase universal o serviço cívico – uma iniciativa que desde 2010 permite aos jovens entre os 16 e os 25 anos cumprirem “missões”, de seis meses a um ano, em associações e instituições ligadas ao Estado, como hospitais e teatros, por exemplo, mediante uma remuneração de 573 euros por mês. Em 2014, 35 mil jovens tiveram esta possibilidade; até 2016, Hollande quer abrir esta porta a 150 mil jovens e comprometeu-se a conseguir os fundos necessários, que são superiores a 600 milhões de euros.

Esta é uma forma de fazer os jovens entrar em contacto com o mercado do trabalho, e as estatísticas mostram que tem tido um papel positivo: um relatório do Tribunal de Contas conclui que, antes de fazerem o serviço cívico, 63% dos jovens tinham alguma actividade, mas seis meses depois de o concluírem, 75% estavam a estudar, a trabalhar ou num estágio.

Educar os imãs
França trouxe o exército para as ruas após os atentados dos irmãos Kouachi e de Amedy Coulibay - havia 900 soldados mobilizados para a operação Vigipirate, o plano de alerta contra o terrorismo, a 7 de Janeiro, dia do ataque contra o jornal satírico Charlie Hebdo, e 10.000 passados três dias. “Temos um inimigo no nosso território. “Há muito tempo que não conhecíamos esta situação”, explicou o chefe do Estado Maior do Exército, o general Jean-Pierre Bosser.

Mas o “inimigo” não é toda a população muçulmana, que se calcula ser de cerca de 4,1 milhões – é difícil ter um número preciso, pois França não faz estatísticas para conhecer a origem étnica da população. O Governo, no entanto, quer alargar o diálogo com essa população, criando até um novo organismo para formalizar esse diálogo – reconhecendo, dessa forma, que a o Conselho Francês do Culto Muçulmano (CFCM) é manifestamente insuficiente. O objectivo é estruturar o almejado “islão de França”, livre tanto quanto possível de influências estrangeiras.

Bernard Cazeneuve, o ministro do Interior – que tem também a pasta dos cultos religiosos – anunciou o lançamento de consultas para a criação dessa nova “instância de diálogo”, que poderia estar aberta a intelectuais ou outros representantes da sociedade civil, e não apenas a mesquitas e associações que acabam por ser financiadas por países estrangeiros, muçulmanos, como aconteceu no CFCM, no qual muitos franceses de fé muçulmana não se reconhecem. Ao promover esta iniciativa, no entanto, Cazeneuve pode acabar por não agir de forma muito diferente da de um seu antecessor na pasta do Interior, Nicolas Sarkozy, que em 2002 fechou uma série de dignitários muçulmanos num castelo, numa maratona negocial de 48 horas, até obter um acordo para formar o CFCM.

Outro passo para dar um rosto francês ao islão que se pratica em França – tornando-o mais “republicano” – é dar uma formação cultural sólida e laica aos imãs, muitas vezes provenientes do estrangeiro, não falando ou falando mal o francês. O Governo quer levá-los a frequentar cursos superiores em universidades, como a de Estrasburgo. Não se trata de disponibilizar formação religiosa, mas “diplomas de formação cívica e civil”, explicou o ministro Cazeneuve.

“Precisamos de exigir a excelência. Precisamos de imãs que dominem a nossa língua e os princípios da República”, explicou ao Le Monde. “A obtenção destes diplomas universitários tem de se tornar condição essencial para o recrutamento dos capelões das prisões, dos hospitais e do exército”, afirmou o governante.

Contra o apartheid
A luta contra o inimigo que trouxe a ameaça dos atentados terroristas para o território francês, tornou-se claro, tem de se fazer pela maior integração de uma população que se sente posta à parte. O primeiro-ministro, Manuel Valls, falou de um “apartheid territorial, social e étnico” que divide o país.

Valls referia-se aos subúrbios das grandes cidades francesas, onde se juntam as populações mais pobres, frequentemente imigrantes ou filhos de imigrantes e muçulmanos. Segundo o estudo Trajectórias e Origens, do Instituto Nacional de Estudos Demográficos (INED), 19% dos imigrantes e 14% dos seus filhos vivem hoje numa das 751 Zonas Urbanas Sensíveis (ZUS) – áreas onde há muita habitação social, muito desemprego e poucos habitantes têm uma formação ao nível do ensino secundário. No caso dos imigrantes com origem argelina, como a família dos irmãos Cherif e Said Koachi, que atacaram o jornal Charlie Hebdo, 28% vivem nestas ZUS.

“O facto de pertencer a uma minoria visível é uma penalidade real”, disse ao Le Monde o demógrafo social Patrick Simon, director de investigação no INED. Os Koachi e Amedy Coulibay, que se barricou no supermercado judaico, nasceram em subúrbios de Paris, viveram essa experiência de segregação antes da radicalização. “Em França as políticas sociais são cegas às origens [as estatísticas não especificam as origens étnicas], mas os actores das políticas não o são. Mas como se pretende que a República ignore as diferenças culturais, tudo se passa numa zona cinzenta, sem controlo”, defendeu o investigador.

Numa altura em que todos os euros são contados até ao cêntimo – com Bruxelas de olho nos cofres de Paris, preocupada com mais derrapagens do défice –, não há espaço para grandes generosidades. Por isso, o plano do Governo para lutar contra “o sentimento de ter sido banido do qual sofrem muitos dos nossos concidadãos”, como disse Valls, não tem grandes novidades. Além das escolas e de um aprofundar da relação – ou controlo – da comunidade muçulmana, passa por tentar apertar as regras sobre os programas de construção e atribuição de habitação social.

Por um lado, o Governo procurará introduzir uma maior diversidade social nas urbanizações de preço moderado, permitindo a cobrança de preços diferentes pelo aluguer dos apartamentos, para evitar a estratificação territorial e a concentração de bolsas de pobreza. Por outro lado, as famílias mais carenciadas às quais o Estado atribui alojamento em situações de emergência devem deixar de ser inseridas apenas nos bairros mais pobres –para contrariar os fenómenos de concentração da pobreza e favorecer a mistura social.

E mais: o conselho de ministros especial, “para a cidadania e a igualdade”, do fim da semana passada, anunciou que as câmaras que não constroem as habitações sociais a que a lei as obriga vão mesmo ser forçadas a fazê-lo. Os prefeitos (governadores civis) vão requisitar terrenos nos municípios que não cumprem os requisitos mínimos para iniciar as obras.

Mas nos planos do Governo não há medidas específicas sobre o desemprego, ou para afrontar outro tipo de desigualdades, como as enumeradas num artigo no Le Monde por Didier Paillard, presidente da câmara de Saint-Denis, no Nordeste de capital, onde faltam 200 agentes de polícia “para respeitar a igualdade republicana com os bairros do Norte de Paris”. Um conselheiro do Instituto de Emprego em Saint-Denis vai continuar a acompanhar 187 desempregados, quando na região administrativa parisiense a média é de 104. E tanto quanto se sabe, o orçamento disponível por aluno para a academia de Créteil, da qual faz parte Saint-Denis, continuará a ser 47% inferior à de Paris.

“O Estado não é igualitário. Gasta claramente mais por habitante nas zonas mais ricas do que nos bairros pobres”, resumiu o autarca.

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