Condenações sempre a subir, mas ninguém sabe o que acontece depois da pena

Só no ano passado, foram abertos 1390 inquéritos por abuso sexual de crianças ou menores dependentes

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Daniel Rocha

Pode dizer-se que o número de agressores sexuais de menores condenados não pára de subir desde que o processo Casa Pia de Lisboa estourou, em 2002, mas é impossível dizer quantos reincidem. Nem a Direcção Geral de Reinserção e de Serviços Prisionais (DGRSP) segue o rasto dos que foram sentenciados por crimes contra a autodeterminação e a liberdade sexual de crianças.

À Polícia Judiciária (PJ) chegam cada vez mais casos. Só no ano passado, foram abertos 1390 inquéritos por abuso sexual de crianças ou menores dependentes, 197 por actos sexuais com adolescentes, 38 por lenocínio de menores, 18 por recurso à prostituição de menores, 242 por pornografia de menores. Um número indeterminado de crianças será vítima de outros crimes sexuais, como violação. Em 2002, ano zero do Processo Casa Pia de Lisboa, a PJ abriu 487 inquéritos.

Já é dos livros: o país passou da indiferença à hipersensibilidade. Isso também se nota, ainda que em menor escala, na estatística fornecida pela Direcção-Geral da Política de Justiça. Pelo crime de abuso sexual de menores, por exemplo, a julgamento chegaram 165 pessoas em 2002 – 380 em 2013. No mesmo ano, 116 foram condenadas nos tribunais de primeira instância – 274 em 2013. Todos eles deverão ser incluídos no registo de identificação criminal de pessoas condenadas por crimes contra a autodeterminação e a liberdade sexual de menores de idade que o Conselho de Ministros aprovou quinta-feira.

Cristina Soeiro, coordenadora do Gabinete de Psicologia e Selecção do Instituto Superior da PJ e Ciências Criminais, tem traçado os perfis dos agressores sexuais investigados pela única polícia com competência para o fazer. “Os agressores sexuais de adultos são mais anti-sociais, mais agressivos. Os agressores sexuais de menores tendem a ter menos história criminal. Têm menos auto-estima, mais ansiedade. Vivem mais fechados sobre si próprios”, diz.

A psicóloga criminal encaixa os casos que lhe vão chegando em três grupos. O grupo menos expressivo, ainda que mais mediatizado, é o formado pelos que sofrem de uma parafilia, como pedofilia. Esses sentem mesmo atracção sexual por crianças com menos de dez anos. Acarretam maior risco de reincidência.

O segundo grupo, que Cristina Soeiro chama “hebefilios”, junta os que agridem adolescentes. Há factores facilitadores, como consumo de bebidas alcoólicas ou de drogas ilícitas, explica a investigadora. “[Ocrime] pode não ter a ver com preferência sexual, mas com dificuldade em encontrar parceiro, com falta de competências, com disfunções sexuais, que levam a vítimas mais vulneráveis”, explica.   

O grupo mais comum é aquele que a perita designa de “incestuosos”, constituído pelos que abusam de filhos/filhas, enteados/enteadas, netos/netas, sobrinhos/sobrinhas. E esses tanto podem atacar crianças com menos de dez anos como crianças mais velhas. “Só 8% das vítimas desconhecem os agressores”, sublinha. A maioria é agredida por familiares, amigos ou vizinhos.

Cristina Soeiro e outros investigadores já propuseram estudar a fundo a reincidência de agressores sexuais, mas nunca obtiveram luz verde. Não entende descabido, porém, ter em conta estudos feitos no estrangeiro. “Os nossos estudos vão no sentido da realidade que é encontrada noutros países”, salienta. “Nos países estudados, a taxa de reincidência é de 4 ou 5 %. Quando se tem em conta apenas os indivíduos com parafilias a taxa sobe para 14, 15 ou 16%”.

Um estudo exploratório feito por Armando Coutinho Pereira, técnico da DGRSP, com agressores sexuais que cumpriam pena no distrito do Porto, aponta para 20% de reincidência. Outro estudo, feito por Ricardo Barroso, perito médico-legal, professor da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, mas sobre menores agressores sexuais, indica uma taxa de 19%. Não por acaso, esclarece Ricardo Barroso. As duas amostras são diminutas e dizem respeito a pessoas que estavam em centros educativos ou prisões. Correspondem, por isso, aos casos de maior gravidade.

Para os abusadores sexuais de menores, a proximidade importa, observou Coutinho Pereira, no seu estudo. Muitos sentem atracção por crianças que lhes parecem “ser pouco confiantes, estar sozinhas ou tristes”. Alguns acreditam que têm uma relação especial com elas. De um modo geral, usam um conjunto de crenças para se legitimar. E isso, em seu entender, não desaparece com uma mera pena de prisão. O psicólogo, que já desenvolveu um programa no Estabelecimento Prisional do Funchal, não só defende tratamento especializado como a monitorização pós-reclusão.

Não há um programa nacional de tratamento de agressores sexuais – de menores ou adultos. Um tratamento específico foi testado nas cadeias de Passos de Ferreira e no da Carregueira. Lançado em 2009, pela terapia terão passado 392 pessoas. Pergunta-se porquê apenas nessas duas prisões, por que não outras. Pergunta-se se alguém avalia esses programas, quem, com que resultados.

As alterações ao Código Penal aprovadas quinta-feira fazem uma referência ao tratamento de agressores de menores. De fora ficam os agressores de adultos, espanta-se Ricardo Barroso. Não compreende a omissão. E preocupa-o que a base de dados se torne demasiado acessível. 

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