Obstáculos e encontros

Excesso, diversidade e contrastes. A Colecção Sindika Dokolo apresenta-se no Porto com o título You Love Me, You Love Me Not

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As silhuetas de Kara Walker tanto aludem à violência (racial) como seduzem o olhar dos curiosos
You Love Me, You Love Me Not

 é menos uma exposição de arte do que uma apresentação da colecção da Fundação Sindika Dokolo. Os critérios que terão estruturado a curadoria de Suzana Sousa e Bruno Leitão parecem não ter resistido à intenção generosa de mostrar um grande número de obras. Ao mediatismo que rodeou as circunstâncias do acontecimento junta-se, assim, a evidência de um excesso. Porventura teria sido mais proveitoso deixar espaço às obras. Têm dificuldades em conversar entre si e com o espectador, tal o ruído de fundo. Sim, por vezes, “falam todas ao mesmo tempo” e desse barulho queixam-se, por exemplo, 

Memórias

 de Délio Jasse, as fotografias dos sul-africanos Santu Mofokeng e David Goldblatt ou os bordados da egípcia Ghada Amer. São peças notáveis, sublinhe-se, mas para serem encontradas exigem ao espectador um esforço imprevisto.

Há outro obstáculo na Galeria Municipal Almeida Garrett. A presença inconveniente da luz natural que atrapalha a projecção do vídeo Fluxus, de Kiluanji Kia Henda ou a exibição das fotografias de Samuel Fosso A distracção é pois um estado a que, inadvertidamente, You Love Me, You Love Me Not apela. Existe, contudo, uma forma de o evitar. Criar um percurso por entre e para as obras, sobretudo as mais discretas e eloquentes. Feito esse trabalho, descobre-se a vitalidade e a diversidade da arte africana representada pela colecção Sindika Dokolo.

Na escultura Knife Fight, do sul-africano Michele Mathison, ou nas colagens do tunisino Thameur Mejri ressoa, numa contenção muda e turva, o trauma da violência política e social. Tom semelhante parece caracterizar dois trabalhos que restituem, sobre as suas superfícies, as marcas da colonização portuguesa e do apartheid sul-africano: o já mencionado Memórias”, de Délio Jasse e For Thirty Years Next to His Heart, de Sue Williamson, um painel onde, com as devidas distâncias, muitos de nós se poderão vir a reflectir nas próximas décadas: juntando os cartões de identificação de um sul-africano negro durante o apartheid, a artista devolve-nos a desumanidade da burocracia. Não há qualquer ressentimento sobre a história, apenas “uma meditação” sobre a vida e os fantasmas que permitem ao espectador, seja ele africano, europeu ou americano, deslocar-se, também, do mundo como ele foi ou ainda é. As fotografias, modestas e muito bonitas de Santu Mofokeng constituem uma surpresa, pela ironia cândida dos seus retratados e paisagens, pela sensibilidade das suas composições que buscam e encontram no real a sua própria crítica. E o tríptico de David Goldblatt, embora “escondido”, ganha uma ressonância indiscutível pelas elipses com que “narra” a história de uma igreja africânder. O artista fotografou o interior do edifício em 1965 e o exterior em 1986 e regressaria à mesma rua da Cidade do Cabo para fixar a sua demolição (o Mundial de Futebol de 2010 estava à porta).

Outros moderam com, a sua exuberância, bem com a sua ambivalência, esta dimensão crítica, como as silhuetas de Kara Walker, que tanto aludem à violência (racial) como seduzem o olhar dos curiosos, ou as colagens da queniana Wangechi Mutu, exemplares de um virtuosismo “mágico”, quase glamouroso. São peças que contrastam com o mural de Paulo Kapela ou com a irreverência e a modernidade dos desenhos de Viteix (que a Culturgest apresentou no Porto em 2004) e esse contraste é muito revelador da heterogeneidade da colecção.

Paulo Kapela e Viteix não são os únicos artistas angolanos que mostram obras nesta galeria, mas, pela liberdade e indisciplina que contagiam os seus trabalhos, serão certamente aqueles que urge redescobrir e proteger agora. You Love Me, You Love Me Not não se mostra sem escolhos e enganos, eles abundam, mas também desenha trilhos que conduzem o espectador para os encontros solitários que guarda no seu interior. As obras asseguram-lhes, asseguram-nos isso.

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