Netanyahu em Washington: “Veio, falou e desapareceu”

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O discurso de Benjamin Netanyahu (“Bibi”) no Congresso americano, na terça-feira, foi um acto insólito. O primeiro-ministro israelita foi ao Congresso americano desafiar os Estados Unidos e as cinco potências que negoceiam com o Irão o seu programa nuclear. Foi a convite dos congressistas republicanos. Porquê insólito? O líder de um país que depende da protecção militar e da ajuda financeira americanas vai a Washington tentar sabotar uma opção central da política externa dos EUA e desafiar o seu Presidente.

Não foi um gesto precipitado. Para os republicanos foi uma tentativa de provocar Obama. Para “Bibi” o objectivo público era incentivar o Congresso a rejeitar um eventual acordo com o Irão. O objectivo escondido seria outro. “A suprema prioridade de Netanyahu são as eleições, não é o Irão”, adverte o analista Nahum Barnea. Israel tem eleições no dia 17 e “Bibi” está em apuros. O gesto visaria travar a fuga de eleitores do Likud (de “Bibi”) para partidos do centro e da extrema direita. Por isso introduziu o Irão numa campanha dominada por problemas domésticos.

Quais foram os efeitos? O jornalista Ari Shavit, que diz concordar com algumas coisas que “Bibi” disse, sublinha o
fracasso da sua retórica de evocações históricas: “Escutaram-no e aplaudiram-no, mas não o levaram a sério. A terra não se moveu e o chão não tremeu. A tentativa de mudar alguma coisa falhou. Netanyahu veio, falou e desapareceu.” Em compensação foi louvado pela imprensa saudita.

No plano doméstico, as sondagens indicam que o Likud obteve uma “pequenina” progressão. No plano internacional alienou muitos congressistas democratas, sublinha Barnea. A “relação especial” entre os Estados Unidos e Israel assenta numa base “bipartidária”, acima da rivalidade entre democratas e republicanos. Esta “relação especial” está em lenta erosão e deteriorou-se no mandato de Netanyahu.

“Bibi” nunca teve uma estratégia. É um “sobrevivente” que fez da sobrevivência política a sua arte. Muda de linguagem
consoante as conjunturas, sobretudo as eleitorais. É especialista em gerir o statu quo e evitar rupturas audazes. Tem
bons nervos para praticar uma “estratégia de tensão”, inclusive com os EUA, quando tal lhe é politicamente útil. É mestre na manipulação de sentimentos profundos dos israelitas: “a ameaça existencial” e o temor de um conluio mundial contra Israel.

“Inutilidade estratégica”
Meir Dagan, antigo chefe da Mossad, declarou que Netanyahu é quem “mais danos causa” a Israel na questão iraniana. Mais de 200 oficiais reformados da Mossad, do Shin Beth (segurança interna) e do Aman (informação militar) apelaram publicamente ao voto contra “Bibi”, acusado de uma política “aventureira” que enfraquece a aliança americana.

Tanto os antigos espiões, como muitos analistas, repetem que todo o Médio Oriente está a sofrer uma mudança geopolítica drástica e que Israel não a está a acompanhar. Obama, seguindo a maioria dos estrategos americanos, aposta numa estabilização do Médio Oriente com base em quatro actores de primeiro plano: Turquia, Israel, Arábia Saudita e Irão. Isto supõe “adormecer” a disputa entre xiitas e sunitas e aceitar que o Irão recupere o seu estatuto geopolítico. A emergência do Estado Islâmico tornou urgente esta recomposição.

Se Israel não se ajustar ao novo tabuleiro, corre o risco daquilo a que os analistas chamam "inutilidade estratégica” na política americana para a região. Israel habituou-se a ser o centro das atenções americanas no MédioOriente. Essa época está a passar. Netanyahu desafia a realidade: uma pequena potência não consegue ditar a política da superpotência protectora por mais que se aproveite das contradições americanas ou do peso do lobby judaico nos EUA.

Na campanha eleitoral, a questão palestiniana desapareceu do mapa. Tal como em 2013. Escreveu na altura o analista Gideon Levy: “Israel fez uma categórica declaração sobre aquilo que quer. Não quer nada, quer que o deixem em paz. Os eleitores querem uma vida tranquila, confortável, pacífica e burguesa. (...) Que vão para o inferno as questões incómodas – palestinianos, colonos e Irão.”

No editorial sobre o discurso de “Bibi” no Congresso o diário Haaretz (centro-esquerda) sublinha que a verdadeira “ameaça existencial” ao Israel democrático é a interminável colonização do território palestiniano. “Durante os seis
anos de Netanyahu, a ocupação ancorou-se mais no coração de Israel. As tensões internas entre judeus e árabes agravaram-se e os partidos de extrema-direita rivalizam entre si na iniciativa de leis antidemocráticas destinadas a
institucionalizar a discriminação contra a minoria e despojá-la de direitos políticos e de expressão.”

Com a solução “dois Estados” praticamente morta, sobra a solução dita “Estado judaico”. Com a inevitável superação da população judaica pela árabe, desenha-se no horizonte um sistema de apartheid – explosivo e sem futuro. São israelitas quem, há muitos anos, o diz. Hoje discutem-se ideias que há poucos anos eram inimagináveis e seriam denunciadas como “racistas”, lamenta Collete Avital, antiga embaixadora em Lisboa.

E se “Bibi” perder?

Nestas eleições há uma novidade. Para enfrentar o Likud, os trabalhistas de Yitzhak Herzog coligaram-se com os centristas da ex-ministra da Justiça Tzipi Livni, formando a União Sionista. Estão empatados nas sondagens. Isto não quer dizer muito. O sistema eleitoral israelita impõe um parlamento fragmentado, o que exige coligações de três, quatro ou mais partidos. Os dois partidos históricos, Labor e Likud, sofreram uma enorme erosão e mesmo coligados ficariam longe da maioria de 61 deputados. Uma dezena de outros actores, da esquerda à extrema-direita, passando pelo centro, terão um papel relevante.

“E se Netanyahu fosse batido?”, interroga-se o analista francês Dominique Moïsi. “As consequências seriam positivas para a imagem do Estado hebraico no mundo. (...) Mais do que uma vitória do centro-esquerda, seria uma rejeição de Netanyahu.” Mais por razões domésticas do que por razões de política internacional. Há muitos cenários: uma aliança da União Sionista com centristas; uma coligação do Likud com a extrema-direita; e, inclusive, uma “união nacional” entre Netanyahu, Herzog e centristas. “Bibi” tem uma vantagem: com mais escolhas, é quem mais facilmente pode construir uma coligação.

Na esquerda o ambiente é pessimista. “O problema palestiniano é um problema sem soluções”, diz o historiador Tom Segev. Herzog tenderia, no entanto, a normalizar as relações com Obama. Gideon Levy tem o pressentimento de que Netanyhau “está acabado”. Mas nada espera de Herzog: “Seria acolhido como herói em Washington e na Europa, dialogará com os palestinianos mas não fará nada.” Para onde caminha Israel?

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