A luz como meio e limite: Do começar...

Todo o começo é fabuloso, perdendo-se no labirinto do espaço e do tempo. O múltiplo domina e só a fábula simplifica, encadeia as coisas e as imagens como contas num fio. Na génese antes do comando “Haja luz” já havia o caos, e o espírito, e a voz, tudo sinais de uma divisão ou separação. Algo está separado que recebe a ordem: “Haja luz. E houve luz. Deus viu que a luz era boa; e fez a separação entre a luz e as trevas”, a terra cinde-se, divide-se do céu e a estas seguem-se outras divisões, o informa parece exigir a forma, o abismo quer finitude, as trevas já queriam a luz. E outras divisões se seguiram, imparavelmente, que organizaram a história. O que antecede a fábula é a divisão. Se o “espírito de Deus pairava sobre a face das águas”, é porque a água e a terra já estava aí, porque a água constituía uma espécie de “espelho”, um espelho primordial que espelhava sem porquê, que tinha de ser extraído, onde o “espírito se inventa”. Todo o comando e os ouvidos para escutar vêm do lado de lá do espelho.

Muito antes de existirem seres semelhantes a “homens”, os animais se reflectiam nas águas, antes do espírito, como as nuvens ou as árvores. Tudo se dividia sem ser visto. Antes dos animais e dos espíritos, das palavras de ordem e dos mandamentos, estavam as imagens, a Physis, que dizemos “natureza”, a qual se dividia profusamente, criava novos entes e os multiplicava. Sabemos do ódio votado por Borges aos espelhos, que acusava de multiplicar os entes e o pior de todos, os homens. Mais fascínio do que ódio. Fascínio que regressa uma e outra vez com a fotografia, verdadeira especulação sobre as origens como se constata no calótipo de William Talbot, Lacock Bay de 1840. Talbot terá descoberto como é pela fixação das imagens que se cria o lado de cá da Physis, a história e as suas leis, mas também as suas improbabilidades, os deuses e as sereias, as sombras e os fantasmas, toda a antifísica ou metafísica. Basta pensar no vídeo The reflecting Pool, de Bill Viola, para perceber como as máquinas nos revelam qualquer coisa dessa fabulosa origem e também a origem das fábulas.

Seria mais convincente dizer que no início estavam as imagens e não o logos. Acertar-se-ia melhor se disséssemos que no início está a divisão — a profusão e a multiplicidade das coisas e dos seres e a possibilidade de lhe dar um sentido especulativo. Somos ainda devedores a Hegel por nos ter dado conta de tudo isto. Estamos sempre do lado de cá dos começos e antes dos fins, e parece que nos movemos num círculo vicioso. Mas este está sempre a ser rompido. O mesmo círculo das águas eternas reflectindo o céu eterno. Era preciso curto-circuitar esse espelhamento solitário. Pensar é esse curto-circuito, mas todos os esforços dos cognitivistas actuais, dos neurofilósofos falham neste ponto. Os laboriosos estudos da obsessão pelo cérebro falham o essencial, já indicado há milénios por Heráclito: “De todas (as coisas) o raio fulgurante dirige o curso” (frg. 64). O importante surge sem preparação, com a  rapidez do relâmpago. A luz heracliteana era violenta e súbita, não dominável, porque era o princípio de todas as diferenças. De repente, está-se lá. O que originou o pensar, todas as fábulas possíveis, é uma divisão que tem que ver com uma “guerra”, que Heráclito denominava “polemos”: “O polemos é de todas as coisas pai, de todas rei, e uns ele revelou deuses, outros, homens; de uns fez escravos, de outros livres” (frg. 53). Combate, guerra, diria que se trata da nitidez que sobrevém à divisão. As fábulas querem fixar as linhas de partilha, mas não há muralhas da China na vida, a divisão primordial desdobra-se infindavelmente e contínua ao trabalho. Um poder que quisesse ter o poder do relâmpago anularia a divisão.

O pensar surge da divisão. Que é sempre uma divisão de um pensar que está presente, sem se pensar. Não se trata dePensar como uma montanhacomo defende Aldo Leopold, ou do pensar absoluto da carraça de von Uexküll, mas de um pensar que se pensa, que se espelha e especula para pensar. Percebe-se, porque o logos não pode ser originário, que pensar é “especular com imagens”, como dizia Giordano Bruno, que tudo começa na imagem. Como se no espelho primitivo estivessem os reflexos que a fotografia e a fábula fixaram, mas também todas as infinitas variações do impossível, mas que a arte realiza, com a mesma natureza dos sonhos e dos delírios, da loucura e da embriaguez, de onde surgem os objectos como deuses, sereias e monstros, e começam a escorrer para a vida, como diz Pessoa na Mensagem.

A história mais não foi do que a fixação de algumas fábulas que se pretendem únicas e absolutas, a dos povos, das guerras, da toma da terra, da acumulação da energia humana em mãos humanas, a imposição de um nomos vivo que tudo verga à sua lei. Tais estórias terminantes apagam por necessidade a sua origem nesse polemos que tudo governa, cuja potência procuram capturar. Se fomos no Ocidente o povo dos espelhos, ficámos aprisionados nos espelhismos da história, como nessa grande alegoria especulativa de Borges: “Naquele tempo, o mundo dos espelhos e o mundo dos homens não estavam, como agora, incomunicáveis. Eram, além disso, muito diferentes; não coincidiam nem os seres nem as cores nem as formas. Ambos os reinos, o especular e o humano, viviam em paz; entrava-se e saía-se pelos espelhos. Uma noite, a gente do espelho invadiu a terra. Sua força era grande, porém, ao fim de sangrentas batalhas, as artes mágicas do Imperador Amarelo prevaleceram. Este rechaçou os invasores, encarcerou-os nos espelhos e lhes impôs a tarefa de repetir, como em uma espécie de sonho, todos os actos dos homens. Privou-os de sua força e de sua figura e reduziu-os a meros reflexos servis. Um dia, entretanto, livrar-se-ão dessa mágica letargia.”

A ser assim, a história está em aberto, a velha divisão voltará a operar, não apenas sob as formas hostis da entropia e da ruína das coisas, do acidente ou da catástrofe; através do espelho, os corpos e os reflexos entrarão em combate por outras formas de ser e de vida, longe daquelas que o imperador Amarelo obrigou a repetir servilmente, ou seja, aquelas que nos conduziram até aqui, ao ponto onde estamos. Platão era o nome do Imperador Amarelo, aquele que esconjurou a imagens e as tornou inimigas do conceito, que denunciou a ilusão do reflexo, para melhor ordenar o mundo à luz de uma luz absoluta, e inumana. A fotografia e o cinema salvaram esse especular em imagens, reordenando de outro modo a nossa relação com a Physis e a história. A técnica revela possibilidades inauditas. E, com ela, a luz tornou-se mais modesta, mas mais libertadora, como a da electricidade, que se liga e desliga, apaga e acende. Num texto sobre a electricidade, diz Francis Ponge: “Tereis sentido, não é verdade, como está maravilhosamente em nosso poder lançar sobre vós, sobre mim, sobre os lugares da evidência e da actividade, uma luz forte, intensa e impiedosa, ou então o poder de voltar a mergulhar na noite. E apreciareis então a noite, e apreciareis a poesia que se vai seguir, com toda uma outra violência, uma outra voluptuosidade.”

 

José Bragança de Miranda tem dirigido a sua reflexão para o domínio da Teoria da Cultura e da Estética. É autor de muitos livros, como sejam Analítica da Actualidade, Política e Modernidade, Traços. Ensaios sobre a Cultura Contemporânea, Teoria da Cultura

 

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Bruce Nauman, "Life, Death, Love, Hate, Pleasure, Pain", 1983
Bill Viola, "The reflecting Pool", 1977-79 6’ 58’’, film still
William Talbot, "Lacock Bay", 1840