O nosso tempo

Convém manter o ouvido afinado aos ritmos seculares do nosso tempo.

Não se comemoram apenas, por estes anos, os cem anos da I Guerra Mundial, mas também os duzentos da derrota definitiva de Napoleão, que deu origem à Europa que a I Guerra Mundial viria a destruir.

Há duzentos exatamente, Napoleão já tinha sido deposto uma vez e exilado na ilha de Elba, mas fugira de volta para França disposto a retomar o poder aos Bourbons. A 7 de Março de 1815, o exército francês apanhou-o em Grenoble. "Se me querem matar, aqui me têm, o vosso imperador", terá dito ele. Os soldados mudaram de lado e no dia 21 Napoleão estava de novo em Paris e no trono imperial. Depois disso foram os famosos "Cem Dias", Waterloo, a derrota final. Napoleão foi mandado para a ilha de Santa Helena e a Europa ficou controlada pelos impérios reunidos no Congresso de Viena.

Essa Europa que nasceu há duzentos anos era imperialmente estável e previsível, mas foi sendo transformada por tendências poderosas: o socialismo e o movimento operário, o nacionalismo, a industrialização. Mesmo assim, o colapso dos impérios na I Guerra Mundial — como o fim da Europa napoleónica cem anos antes — foi mais rápido do que esperavam os europeus da época. Daí surgiram democracias frágeis que foram suplantadas pelo fascismo, uma segunda guerra mundial, e um continente dividido em dois.

Vão comemorar-se também este ano os cem anos do naufrágio do Lusitania, que trouxe os EUA para a Grande Guerra na Europa. E, daqui a dois anos, o nascimento da União Soviética. Quando este jornal nasceu, a Europa estava ainda dividida entre esses dois poderes. Tal como a Europa de há duzentos anos, parecia um continente previsível. Tal como a Europa de há cem anos, o seu colapso foi repentino. Mas distintamente dela, esse colapso deu-se quase sem guerra no continente (exceto, em impressionante simetria, aquela que acabou onde tudo começara cem anos antes, nos Balcãs, na Jugoslávia).

A grande questão que agora temos para responder é: que Europa é a nossa? Uma recapitulação da que nasceu há cem anos, democrática e problemática, instável e inevitável no conflito? Ou qualquer coisa de novo?

Ou mais sucintamente: uma Europa do passado ou do futuro? Se formos do passado, não seremos mais do que a Velha Europa, tentando encontrar combinações para gerir demasiados poderes em espaço tão curto. Se formos do futuro, seremos uma Europa do mundo, encontrando soluções democráticas transnacionais para as grandes crises globais, da economia ao ambiente.

Não terá escapado ao leitor atento, contudo, uma terceira hipótese: a de uma Europa burocraticamente imperial, previsível e estável, pactuada entre os poderes do momento. Essa é a Europa do presente. Quando, no próximo dia 18, manifestantes se dirigirem a Frankfurt para protestar junto à nova sede do Banco Central Europeu, será contra essa Europa distante e ademocrática que protestarão.

Assim, quando se lê no jornal as notícias do dia, convém manter o ouvido afinado aos ritmos seculares do nosso tempo. Se os astrónomos ainda julgam ouvir os restos do Big Bang, não nos é nada difícil reconhecer nas páginas deste jornal a crónica de uma Europa que falhou há duzentos anos, e há cem anos — e que, com a nossa ajuda, pode ser que acerte desta.

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