Primeiro teste de diagnóstico genético em venda directa autorizado nos EUA

As autoridades de saúde norte-americanas deram, pela primeira vez, o sinal verde para a comercialização directa, junto do grande público, de um teste genético de diagnóstico médico.

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Os "segredos" do seu próprio ADN vão ficar ao alcance directo dos consumidores do mundo inteiro? Matthew Fearn/EPA

A FDA (Food and Drug Administration) – a agência federal que, nos EUA, é responsável pela homologação de medicamentos e tratamentos – acaba de anunciar que irá permitir que a empresa californiana 23andme, líder na área da genómica pessoal, proponha aos seus clientes um teste de despistagem de uma doença genética rara sem ser para isso necessário recorrer previamente a um médico. Esta decisão segue-se a uma polémica entre a FDA e a 23andme que estalou em finais de 2013.

Fundada em 2006 por Anne Wojcicki (mulher de Sergey Brin, co-fundador da Google), a 23andme propunha análises ao ADN a quem estivesse disposto(a) a dar um pouco de saliva e a pagar uma determinada quantia (que de 999 dólares passou para 499 e finalmente para 99 dólares) pelo kit previsto para o efeito. Até 2013, isso permitia a qualquer pessoa conhecer a sua predisposição genética face a uma série de doenças (cancros, Alzheimer, doenças cardiovasculares, diabetes, entre outras) e ainda obter informações sobre a sua ancestralidade.

Como na altura não era considerado uma ferramenta médica, o kit da 23andme não precisava de autorização particular para ser comercializado nos EUA. Mas em 2012, a empresa decidiu submeter à FDA um pedido que visava transformar o seu kit de genómica “recreativa” num verdadeiro teste genético de diagnóstico médico.

Uns meses mais tarde, as autoridades de saúde norte-americanas – insatisfeitas com os elementos fornecidos pela empresa para atestar da qualidade do seu produto – interditavam a venda pela 23andme da sua componente de saúde, obrigando-a a limitar-se à componente genealógica. A FDA argumentara na altura que a interpretação deste tipo de informação médica por leigos era demasiado complexa – e potencial causadora de danos psicológicos graves pelas revelações que poderia vir a fazer – para poder estar directamente acessível ao consumidor.

Com o intuito de não comprometer os seus objectivos comerciais, a partir de Novembro de 2013 a 23andme passou portanto a vender unicamente os seus serviços de genealogia genética. Contudo, continuou a fornecer aos seus clientes toda a sua informação genética – só que “em bruto”, ou seja não acompanhada de interpretações em termos de riscos de doença. Isto fazia com que os não especialistas já não conseguissem perceber os “segredos” escondidos nos seus genes.

Na altura, peritos norte-americanos criticaram a postura da FDA, argumentando que os receios de riscos psicológicos potenciais associados ao facto de uma pessoa se inteirar da sua predisposição genética para tal ou tal doença – mesmo que fosse trágica e incurável – eram exagerados.

Agora, a FDA e a 23andme chegaram finalmente a um acordo – embora muito pontual e limitado a uma única doença genética, extremamente rara, chamada síndrome de Bloom.

Pessoas baixinhas
A síndrome de Bloom é uma doença hereditária provocada por mutações num gene chamado BLM. Os portadores de apenas uma cópia do gene mutado não desenvolvem a doença, mas aqueles que herdaram duas cópias (uma do pai, outra da mãe) são afectados. Se ambos os elementos de um casal forem portadores destas mutações, os seus filhos terão 25% de probabilidade de herdar a doença.

A síndrome de Bloom caracteriza-se por uma elevada propensão a desenvolver “múltiplos cancros muito cedo na vida, e ainda infecções recorrentes, doença pulmonar crónica, despigmentação cutânea e diabetes” do adulto, lê-se no site da 23andme. E, por razões que se desconhecem, as suas vítimas são habitualmente de baixa estatura. Apenas uns 300 casos desta síndrome foram registados até à data – e um quarto deles dizem respeito a pessoas de origem judia asquenaze.

Descoberta e descrita em 1954 pelo dermatologista nova-iorquino David Bloom, a síndrome surge porque as mutações do gene BLM conduzem à produção de versões anormais de proteínas chamadas helicases, que estão envolvidas em processos celulares cruciais.

Quanto ao teste desenvolvido pela 23andme (cuja qualidade foi agora validada pela FDA), apenas detecta uma mutação particular do gene BLM, chamada BLM-Ash, que é responsável pela maioria dos casos de síndrome de Bloom entre os asquenazes.

Por que esta reviravolta da FDA? Porque esta agência considera agora que o teste “tem o potencial de fornecer às pessoas informações acerca de mutações de que são portadoras e que poderiam transmitir aos seus filhos”, explica a FDA num comunicado emitido há dias. A FDA declara ainda “acreditar que, em muitas outras circunstâncias deste tipo, os consumidores não deveriam precisar de passar por um médico para aceder à sua informação genética pessoal”. E revela ainda a sua intenção de isentar este tipo de testes, num futuro próximo, da exigência de obter uma autorização junto das autoridades de saúde antes de ser comercializado.

“Trata-se de um importante primeiro passo no sentido de honrarmos o nosso compromisso de tornar a dar aos consumidores americanos acesso aos seus resultados genéticos de saúde”, disse por seu lado Anne Wojcicki, numa carta dirigida aos clientes da 23andme. “E também nos fornece um quadro legal para apresentar futuros pedidos.”

Em Portugal, ao abrigo do artigo 15º da lei 12/2005 (Informação genética pessoal e informação de saúde), os testes de diagnóstico médico só podem solicitados por equipas médicas competentes a laboratórios acreditados, sendo também os médicos que recebem os resultados e explicam o seu significado aos doentes. Porém, com a liberalização que se prenuncia do outro lado do Atlântico, esta situação poderá vir a alterar-se radicalmente, com os consumidores a terem acesso directo a um número crescente de testes deste tipo.

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