Investigações oficiais apontam para duas teorias e nenhuma delas leva ao Kremlin

Comissão de Investigação da Rússia suspeita de "inimigos do Estado" ou jihadistas, e oferece recompensa para quem avance "informação valiosa" no caso. Oposição responsabiliza o Kremlin.

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Nemtsov foi morto a tiro a poucos metros do Kremlin George Malets/Reuters

A notícia da morte de Boris Nemtsov, abatido a tiro a poucos metros da Praça Vermelha e do Kremlin na sexta-feira à noite, levantou um furacão de críticas, acusações, contestação, especulações e teorias da conspiração. Mas oficialmente, só existem duas hipóteses/explicações para o caso, que será apurado num inquérito supervisionado directamente pelo Presidente russo, Vladimir Putin: uma tem a ver com um assassínio encomendado, e a outra aponta para um acto terrorista.

Conforme confirmou o Comité de Investigação da Rússia, em comunicado, Boris Nemtsov terá sido vítima ou de uma “tentativa de desestabilização da situação política” interna, ou alvo de uma vingança de jihadistas – essa possibilidade baseia-se nas declarações proferidas pelo antigo vice primeiro-ministro russo no rescaldo dos atentados terroristas em Paris, nomeadamente a sua condenação do ataque ao jornal satírico Charlie Hebdo. Um outro dado avançado para sustentar a ligação ao extremismo islamista tem a ver com as origens judaicas de Boris Nemtsov.

Quanto à primeira hipótese, a tese desenvolvida pelos investigadores transforma Nemtsov, um conhecido mas “inofensivo” detractor do regime de Vladimir Putin, numa espécie de peão das forças que se opõem ao Presidente da Rússia. A sua morte, especulam, serviria o propósito dos críticos de Putin ou dos inimigos do país interessados em provocar o caos interno: Nemtsov “foi sacrificado por aqueles que não excluem nenhum método para alcançar os seus objectivos políticos”, estimou o responsável pelo Comité de Investigação, Vladimir Markin, que como Putin, considerou o assassínio “uma provocação contra o Estado” russo.

Os “provocadores” não foram por enquanto nomeados pelos encarregados do inquérito, mas uma possibilidade que está a ser veiculada por várias figuras próximas do Presidente é que “sejam pessoas que querem ver uma ‘revolução’ a acontecer na Rússia e que organizaram os ‘protestos’ da praça Maidan de Kiev”, como escreveu Sergei Markov, um analista político pró-governamental, na sua página de Facebook.

A única hipótese que as autoridades não estão a considerar é aquela que é apontada como “lógica” ou até mesmo “óbvia” pela oposição russa e os críticos internacionais: a de que Boris Nemtsov foi eliminado pelo Kremlin, no âmbito da sua campanha de intimidação e marginalização de dissidentes e adversários políticos, cujo protagonismo os leva ou à prisão ou ao exílio.

“Nemtsov foi morto por causa dos seus discursos contra o Presidente Vladimir Putin, as suas investigações anti-corrupção e o seu papel crucial na oposição política russa”, afirmou o antigo reitor da Nova Escola de Economia de Moscovo, Sergei Guriev, actualmente a leccionar no Sciences Po de Paris, num artigo para o Financial Times.

Para os defensores dessa tese alternativa, é relativamente irrelevante saber se a ordem foi dada por Vladimir Putin. Como escreveu no The New York Times a jornalista e activista russa, Masha Gessen, até nem é difícil acreditar que o Kremlin não tenha tido uma participação activa no assassínio de Boris Nemtsov. “O Kremlin montou recentemente um exército de vingadores que acreditam estar a agir no interesse do país, e que não precisam de receber instruções explícitas”, refere, argumentando que a eliminação de Nemstov “marca o início de um novo e aterrador período na História da Rússia”.

A televisão russa divulgou este domingo as imagens pouco conclusivas do ataque a Nemtsov registadas pelas câmaras de videovigilância instaladas na ponte onde foi abatido: vê-se um homem, possivelmente o atirador, a saltar para um carro em movimento, mas o tiroteio está bloqueado pela passagem de um limpa-neves. Os vídeos vieram adensar as dúvidas dos opositores, que se questionam como é possível que o local mais vigiado da capital russa estivesse desprovido de polícias naquele momento.

O Comité de Investigação da Rússia fez entretanto saber que existe uma recompensa de três milhões de rublos (cerca de 44 mil euros) para testemunhas – cuja anonimidade será garantida – que disponham de “informação valiosa” e relevante para o caso. Mais uma vez, os críticos suspeitam da iniciativa das autoridades e põem de antemão em causa a credibilidade da informação que vier a ser produzida.

Impacto imprevisível

Além de alimentar a instabilidade e paranóia política e de segurança, e de mobilizar milhares de pessoas para a rua, o assassínio do antigo vice primeiro-ministro poderá provocar um outro efeito colateral e imprevisível: a desvalorização da moeda, que caiu 46% em 2014 por causa da situação na Ucrânia, ou a venda apavorada e ao desbarato de activos financeiros ou patrimoniais, se os sentimentos de desconfiança e insegurança vingarem nos mercados.

Segundo escrevia no domingo a agência financeira Bloomberg, citando analistas de bancos de investimento, fundos de capitais e de empresas de gestão de fortunas, essa é uma possibilidade que não pode ser descartada, embora uma reacção de pânico seja pouco provável, tendo em conta que os grandes investidores que apostam na Rússia não ignoram a “natureza” pouco democrática do regime de Moscovo.

Os mercados implicitamente aceitam que “a democracia russa não cumpre os critérios ocidentais e que a situação de segurança ou o funcionamento do sistema judicial estão longe de serem perfeitos”, observou Lutz Roehmeyer, que supervisiona activos no valor de 1,1 mil milhões de dólares no Landesbank Berlin.

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