“Na Saúde todos os extintores estiveram voltados para a parte financeira”

O novo presidente da Federação das Sociedades Portuguesas de Obstetrícia e Ginecologia alerta que os serviços públicos estão numa situação de "ruptura". Apela a reformas que passem por integrar as maternidades em hospitais e por criar uma rede que permita diagnosticar os casos oncológicos mais cedo.

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Daniel Pereira da Silva, novo presidente da Federação das Sociedades Portuguesas de Obstetrícia e Ginecologia Sérgio Azenha

Recursos humanos é a expressão mais repetida pelo ginecologista Daniel Pereira da Silva na primeira entrevista ao PÚBLICO depois de ter sido eleito no dia 15 de Fevereiro presidente da Federação das Sociedades Portuguesas de Obstetrícia e Ginecologia (FSPOG).

Aos 64 anos, o antigo chefe de serviço do Instituto Português de Oncologia de Coimbra mostra-se especialmente preocupado com a crise e com o “esvaziamento” de profissionais de saúde do Serviço Nacional de Saúde e descreve um cenário de equipas desmotivadas com os internos a assumirem demasiadas funções depois de anos em que " todos os extintores estiveram voltados para a parte financeira". Ao mesmo tempo, assume que sem a oferta privada teria já havido uma “ruptura” e apela a uma verdadeira reforma.

Para o médico é urgente mudar políticas e pensar de forma mais integrada a questão da natalidade. Alargar a idade dos tratamentos de procriação medicamente assistida e legislar sobre a gestação de substituição são pontos que quer ver resolvidos para evitar uma “segregação social”. A integração de todas as maternidades em hospitais e a criação de uma rede de referenciação em oncologia são algumas das prioridades que aponta, numa altura em que assiste a um aumento de casos de cancro do colo do útero diagnosticados demasiado tarde.

Acaba de chegar à presidência da FSPOG, que congrega várias especialidades. Que prioridade destaca na área da ginecologia e obstetrícia num momento difícil que o país atravessa?
Estes momentos de crise também são momentos de oportunidade. Não tenho nada contra os aspectos financeiros, mas o foco deve ser na eficácia e nos ganhos em saúde, neste caso em concreto para a mulher. Os serviços estão neste momento pobres para as necessidades. Há aspectos muito importantes que estão em causa. Temos feito uma evolução por força da crise mais virada para as questões financeiras e a contenção de custos e eu diria que estes aspectos conjunturais têm levado a desinvestimentos. Isso vai-se reproduzir por muitos anos. É forçoso que encontremos aqui uma perspectiva crítica desapaixonada, se possível despartidarizada, porque isto é uma questão política sobre o que queremos fazer em termos estruturais. O que verificamos é que em todo o país as unidades de ginecologia e obstetrícia estão muito carenciadas de recursos humanos. O que se passou com a urgência de uma forma geral passa-se nesta área. Com muita frequência recebemos informações de equipas que não estão devidamente estruturadas e de internos da especialidade que estão a fazer de especialistas. Não deviam estar a exercer esse grau de responsabilidade.

Os últimos anos têm sido marcados por algumas tentativas de reforma hospitalar, mas que se têm protelado. Como vê o encerramento da Maternidade Alfredo da Costa (MAC) e a questão das maternidades integradas em hospitais?
Já fizemos alguma optimização dos recursos com o encerramento de maternidades. Mas temos um problema grave na área de Lisboa com a MAC. Inserir a MAC numa estrutura hospitalar mais alargada é algo que ninguém põe em causa. Hoje não é aceitável que uma maternidade esteja fora de um ambiente de um hospital. É fundamental que o caso se resolva porque há um manancial fantástico de capacidade instalada e de recursos humanos subaproveitados. Na região de Coimbra também há um impasse que não é aceitável. Os dois hospitais juntaram-se por portaria, mas na prática a ginecologia e obstetrícia mantiveram-se a funcionar nas duas maternidades em separado. Também não é recomendável o que se fez com o Centro Materno Infantil do Norte. O que é recomendável é que uma estrutura daquelas esteja integrada numa unidade hospitalar que permita responder a necessidades como a hipertensão, a insuficiência renal, e outras patologias que necessitam de especialistas. A maternidade isolada não tem recursos para esses especialistas.

Em parte o excesso de oferta deve-se também à queda da natalidade. Que consequências tem tido a redução do número de partos?
A natalidade é um problema político gravíssimo. Não vejo políticas activas de promoção da natalidade. O que vemos é as mulheres cada vez mais no desemprego. O futuro do país em termos de Segurança Social e de todo o desenvolvimento passa por aí. A queda da natalidade, além de comprometer o nosso futuro, cria-nos a nós [ginecologistas e obstetras] problemas em termos de formação dos recursos humanos. Temos um número cada vez menor de partos mas não temos um número menor de patologias. São mulheres com cada vez maior idade a ter filhos. Essas mulheres têm mais problemas, mais desafios. Essas mulheres exigem mais recursos e mais recursos diferenciados. Não servem as tentativas de substituir médicos por enfermeiros. É necessário concentrar alguns recursos para oferecer cuidados de excelência, tanto na área dos partos como da oncologia ginecológica. Discute-se há demasiado tempo a área da referenciação em oncologia e alguns tumores não têm a taxa de sobrevida como nos países mais desenvolvidos por faltar essa rede.

A procriação medicamente assistida e as barrigas de aluguer têm estado em debate no Parlamento. Com cada vez mais mulheres com problemas de fertilidade e a queda da natalidade, a actual lei dá resposta?
É fundamental que se agilizem os meios para melhorar a acessibilidade aos tratamentos. Quando vamos analisar a frequência em termos etários do público e do privado vemos que é completamente diferente. Temos de analisar os recursos públicos e a eficácia dos tratamentos com esses custos, mas sem dúvida que há que ponderar um aumento da idade para lá dos 40 anos. Já a barriga de aluguer é um termo muito feio que não ajuda. Mas seria de facto, à semelhança de outros países, um avanço a que a mulher portuguesa tem direito e a que devia ter acesso. Estamos mais uma vez a fazer segregação social, porque quem vai a outros países são pessoas que têm muitos recursos.

No campo da interrupção da gravidez voltou a surgir uma proposta de alteração da lei por parte de movimentos de cidadãos que entendem que as mulheres devem passar a pagar os abortos. Chegou a altura de rever a actual lei?
Devemos ter atitudes preventivas e não está amplamente divulgada entre nós a utilização da contracepção de emergência. Não falamos nela sem tabus. A Holanda aborda a contracepção de emergência de forma muito directa no contexto dos métodos contraceptivos. É dos países da europa com menor taxa de interrupções voluntárias da gravidez. Será por acaso? As pessoas têm conhecimentos que lhes permitem lidar com as situações na altura própria, são essas ferramentas que temos de dar às pessoas. Não acredito que as atitudes punitivas no aborto levem a melhores resultados. As situações de repetição, por vezes no mesmo ano, requerem da nossa parte uma atitude estratégica.

O que é uma atitude estratégica?
A mulher deve ser avaliada numa consulta por um psicólogo e com uma abordagem multidisciplinar para que faça e sinta a necessidade de fazer uma contracepção regular.

Ao mesmo tempo há notícias que dão conta de casos de grávidas com fome… Com a crise os recursos humanos estão a ser ocupados por mais casos sociais?
Numa situação de crise os casos extremos acontecem e envergonham-nos a todos enquanto sociedade. Mas temos que ter o equilíbrio para ver que são casos extremos. Que a honra seja feita à mulher, porque quando está grávida preza a preservação da gravidez, e aos cuidados de saúde primários que são quem está no terreno e, apesar das carências, sensibilizados para esse efeito.

A falta de recursos de que fala tem comprometido o acompanhamento das mulheres e piorado alguns indicadores?
Atingimos indicadores fantásticos em termos mundiais a esse nível e não tem havido retrocesso. Mas há questões de futuro, porque as equipas estão subdimensionadas e há um esgotamento. As pessoas estão saturadas por tentarem cobrir todas as necessidades e porque não vêem uma luz ao fundo do túnel. Só agora é que alguns hospitais começam a poder contratar. Os serviços estão com muitos tarefeiros que não respondem perante os serviços e não verificam o que fizeram enquanto equipa.

O aumento do número de grávidas com diabetes, hipertensão e outras doenças deve-se à crise ou ao aumento da idade da maternidade?
Isso é tudo inerente ao factor idade e não porque haja já aqui consequências objectivas de outras condições sociais desfavoráveis. Não há dados que permitam concluir isso.

O tema dos medicamentos inovadores tem estado na ordem do dia com o caso da hepatite C. Na área da ginecologia e obstetrícia, nomeadamente em casos oncológicos, como estamos em termos de acesso aos novos fármacos?
Há uma molécula inovadora no tratamento dos miomas que na maior parte dos países da europa é comparticipada praticamente a 100% e connosco é 37%, mas a maior diferença é na área da ginecologia oncológica onde os novos fármacos não chegam com facilidade. A demasiada facilidade também não é a atitude correcta, temos de ter uma atitude crítica. Mas se não houver inovação não há desenvolvimento.

E em termos de tempos de espera para consultas de especialidade e procedimentos cirúrgicos?
O processo de recuperação de listas de espera na área cirúrgica teve um impacto positivo. O que começa a haver é tempos de espera importantes mesmo para consultas, o que tem a ver com o facto de as equipas estarem muito diminuídas.

Mesmo assim uma parte das necessidades não é coberta pelo Serviço Nacional de Saúde mas por seguros privados e pela ADSE, com as pessoas a usarem os privados, nomeadamente nos partos.
Os cuidados prestados pelos privados têm aumentado significativamente e a população é a mesma. Vamos ter de encontrar um equilíbrio. A iniciativa privada tem o seu lugar mas também esvaziou de forma muito súbita os recursos humanos do sistema público, porque esses médicos foram formados no público. Isso agudizou a nossa carência de recursos. Se não tivesse havido uma redução da nossa procura então tínhamos tido uma ruptura. Mesmo assim os recursos humanos estão desmotivados e podem comprometer o futuro.

E o serviço prestado no privado tem qualidade? Como vê por exemplo o elevado número de cesarianas?
A taxa de cesarianas no privado é muito mais elevada, mas também por um viés na procura, ainda que também possam existir questões de critério das equipas. Já os serviços públicos estão a ser penalizados se ultrapassarem uma determinada taxa no que diz respeito às cesarianas.

Os dados do Programa Nacional das Doenças Oncológicas apontam para uma menor adesão aos rastreios da mama e cancro do colo do útero. Que interpretação faz deste recuo?
A nossa taxa de participação não é muito famosa. Uma vez perguntei a um holandês, já que têm um programa de rasteio fantástico, o que é que fazem. Se as pessoas não respondem ao convite, à segunda vez mandam lá uma assistente social averiguar e nós aqui não fazemos mais nada. Temos que fechar o círculo e ser consequentes. Não basta identificar o problema e ficar com ele no colo. As pessoas não vão aos rastreios sobretudo por dificuldades no meio laboral. A grande diferença num rastreio de massas e de base populacional é que há um grande controlo da qualidade.

A entrada da vacina contra o cancro do colo do útero junto das adolescentes poderá estar a fazer esquecer que a camada mais velha de mulheres não está protegida?
É preciso dizer que a vacina é também um trabalho muito bom da Direcção-Geral da Saúde. Temos a taxa de cobertura mais alta do mundo. Mas pode haver também esse efeito e o assunto do rastreio tem de continuar na ordem do dia. Já não víamos situações avançadas de cancro do colo do útero e voltámos a vê-las.

Que avaliação faz das políticas seguidas pelo ministro Paulo Macedo?
Foram anos de uma conjuntura muito negra, em que na saúde todos os extintores estiveram voltados para a parte financeira e económica de contenção de custos. Acho que temos de pensar nas consequências deste desinvestimento. Não houve só contenção de custos em situações bem-feitas, houve mesmo desinvestimento em recursos humanos e equipamentos. Temos de pensar no que queremos e como reestruturar os serviços. Temos de voltar a pôr a saúde na calha do desenvolvimento que não tem estado. Quero acreditar que [o ministro] foi ele próprio vítima da situação conjuntural. Neste momento não estamos num ambiente de investimento e de futuro e isso é deprimente.

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