“Estou muito contente com a companhia, mas queria ter feito mais”

A Companhia Nacional de Bailado conta apresentar nova temporada em Maio. Luísa Taveira, a directora artística, continua a apostar num reportório singular e ainda não desistiu da internacionalização.

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Luísa Taveira fotografada num dos estúdios da Rua Vítor Cordon Pedro Cunha

Luísa Taveira está a acabar de fazer a programação 2015-2016, enquanto os espectáculos da Companhia Nacional de Bailado, que dirige desde Outubro de 2010, se sucedem um pouco por todo o país em reposições há muito anunciadas ou em espectáculos na casa perto do rio que esta formação de reportório tem em Lisboa, numa peça que juntou um músico generoso, um dramaturgo atento e uma bailarina disciplinada em fim de carreira.

Barbora Hruskova nunca fez outra coisa se não dançar e isso deixou-lhe marcas num corpo que à partida, diziam-lhe, não tinha sido feito para a clássica. Luísa Taveira sabe bem do que ela fala. Também foi bailarina e muito do que ouve na voz daquela mulher que em A Perna Esquerda de Tchaikovski partilhou até domingo o palco com uma barra e o pianista e compositor Mário Laginha é-lhe absolutamente familiar: as expectativas, as dificuldades, as dores, as lesões, os medos, as memórias de um bailado particularmente difícil, mas feliz.

“Nesta peça a Barbora é ela mesma, mas é também todas as bailarinas clássicas”, diz Luísa Taveira, consciente do exagero. Está sentada no seu gabinete da Rua Vítor Cordon, perto da Faculdade de Belas-Artes de Lisboa e longe do teatro a que a companhia chama casa, o Camões. É no Chiado que os bailarinos têm os seus dois estúdios principais e, por isso, é lá que passa boa parte do tempo quando não há digressões.

O planeamento da vida da companhia é feito quase todo nesta sede no centro da cidade, que parece não mudar desde os anos 1980. Taveira admite que precisa de obras, tal como o Camões, teatro que foi construído nos tempos da Expo-98, mas não foi especificamente pensado para a dança, o que deixa os seus “bastidores” desadequados às necessidades do dia-a-dia de uma companhia que tem quase 70 bailarinos, embora metade não dance.

“Corremos de um lado para o outro, mas estamos em casa nos dois. Bom, o Camões é ‘a’ casa, mas aqui estão os dois estúdios onde muita coisa nasce e cresce”, diz ao PÚBLICO, com o programa da actual temporada nas mãos, a reservar ainda o paradigma do bailado romântico numa versão do coreógrafo Georges García – Giselle (29 de Abril a 10 de Maio), uma reposição que teve a sua estreia no ano passado, precisamente a peça em que Hruskova se despediu dos palcos; uma homenagem ao Ballet Gulbenkian (12 a 29 de Março), um espectáculo de pequeno formato que junta dois bailarinos da CNB a dois convidados (Tábua Rasa, 21 a 23 de Maio); e ainda uma estreia mundial de um bailado de sempre, O Pássaro de Fogo (18 a 28 de Junho).

Taveira gosta de temporadas assim, que ponham a formação que dirige a trabalhar em velocidades distintas, em “vários andamentos”. 

“Repor o Giselle é importante, porque significa que os projectos continuam vivos. E este é um bailado que faz parte da história da dança e da própria companhia – temos obrigação de o mostrar. Com O Pássaro de Fogo passa-se a mesma coisa. É um daqueles incontornáveis do reportório que já não dançamos há muito tempo, com uma música extraordinária [Igor Stravinski]”, explica, acrescentando que este último é uma das grandes apostas da programação. 

Uma aposta que vem com a assinatura coreográfica de um bailarino da CNB em quem a directora artística tem vindo a confiar projectos de fundo, num gesto que muitos consideraram arrojado. Fernando Duarte já trabalhou clássicos de respeito em anos anteriores – O Lago dos Cisnes e O Quebra-Nozes –, mas este bailado de Fokine, com todo o seu universo mágico que Carlos Pimenta (encenação e dramaturgia) também se encarregará de explorar, será certamente um desafio que se estenderá aos bailarinos e à orquestra.

Foi a pensar nesta última, aliás, que Luísa Taveira foi buscar a obra de 1910: “Pensei num programa que a Sinfónica [Orquestra Sinfónica Portuguesa, formação residente do Teatro Nacional de São Carlos] gostasse mesmo de fazer e lembrei-me do Pássaro. Vai exigir muito de nós e sobretudo do Fernando Duarte, porque é ele que vai ter de reconstruir padrões coreográficos numa área em que já se fez tanto, tanto que é difícil inovar. Mas o Fernando tem um imenso talento como coreógrafo e ensaiador e, por isso, eu confio.”
 
Projecto europeu

Luísa Taveira está habituada a confiar – na equipa, no mecenato da EDP, no crescimento gradual e sustentável das receitas de bilheteira do Camões (285 mil euros no ano passado), nos pequenos projectos que, entre grandes produções, lhe permitem manter abertas as portas do teatro.

Também é na base da “confiança” que está já a projectar a próxima temporada – parte do princípio que terá da Secretaria de Estado da Cultura (SEC), através do Opart, o organismo que gere a CNB e o São Carlos, a mesma verba que teve no ano anterior para programação (300 mil euros). “Quando começo a trabalhar na programação, faço-o de forma muito solitária e contando com o orçamento do ano anterior, a que se juntam os milagrosos 500 mil euros da EDP. E trabalhar apenas de ano a ano espartilha-nos muito, prende-nos.”

Para cumprir um dos primeiros objectivos que impôs a si mesma quando chegou à direcção artística – a internacionalização da companhia –, Taveira precisa de poder programar a três ou quatro anos, o que não acontece, porque os ritmos da SEC e do Orçamento do Estado são outros. “Assim não conseguimos garantir a presença dos coreógrafos estrangeiros com quem gostaríamos de trabalhar e que nos permitiriam, depois, fazer digressões lá fora, com um reportório que misturaria as nossas apostas com peças que são mais reconhecíveis por públicos estrangeiros.”

A belga Anne Teresa de Keersmaeker tem sido uma excepção no que toca a convites internacionais, porque, garante Taveira, “a sua relação com a companhia é fácil, começou ainda nos anos 1990 e o director da Rosas [a formação que a coreógrafa criou] tem casa em Lisboa”. Com os outros é mais difícil, mas isso, reconhece, também a levou a virar-se para pequenos projectos com criadores e companhias que nunca tinham trabalhado com a CNB, a par dos coreógrafos portugueses “que tinham obrigatoriamente de estar”, como Paulo Ribeiro, Olga Roriz ou Clara Andermatt. 

Na próxima temporada, de que Taveira só quer destapar uma pontinha do véu, a Cão Solteiro vai juntar os seus actores à CNB numa peça que explora o ritual do agradecimento em palco. Uma novidade num pacote a anunciar em Maio e que inclui uma reposição de peso – Pedro e Inês (2003), de Roriz, certamente uma das obras mais aplaudidas nos últimos 15 anos da companhia. 

“Estou muito contente com o trabalho que fiz até aqui com a companhia, mas queria ter feito mais”, diz, apesar de a formação “ter evoluído bem”, “com grande intensidade”, a fazer 90 espectáculos na temporada de 2014/2015. “Com outras condições – e não falo só de dinheiro – podíamos ter feito mais.”

Luísa Taveira refere-se ao estatuto do bailarino, um projecto que começou a ser discutido na Assembleia da República há 20 anos, mas que continua por aprovar e que, indirectamente, obriga a companhia a contar com um elenco de 70 bailarinos, embora metade não dance de forma regular; e à sua inclusão no Opart, num modelo que não se cansa de contestar publicamente.

“Continuamos a reconverter as carreiras dos nossos bailarinos que já não dançam, dando-lhes trabalho no guarda-roupa, no serviço educativos, na comunicação, nos estúdios… Mas isto não pode continuar indefinidamente”, diz. Jorge Barreto Xavier, o secretário de Estado da Cultura, deu-lhe garantias de que o problema teria, muito em breve, uma solução, mas para já tudo se mantém na mesma. “Sei que a criação de um estatuto para os bailarinos não tem uma solução fácil nem linear, porque exige regimes de excepção e a solução envolve vários ministérios, mas tem de ser feita. Há muitos modelos diferentes por toda a Europa, e nós temos de chegar a um – mas para isso é preciso vontade política.”

Além do estatuto, Taveira insiste na relação “desadequada” com o Opart, que “torna tudo muitíssimo burocrático”. A chegada recente de dois novos administradores a este organismo, que tem, na sua opinião, carecido de estabilidade – é a oitava composição do conselho de administração que a directora artística conhece desde que chegou há menos de cinco anos –, vem acrescentar mais um episódio a um enredo que já provou, garante, que “o modelo de ligação da ópera ao bailado que o Opart defende está ultrapassado” e tem servido, sobretudo, para “subalternizar” a dança.

Se é verdade que o São Carlos é o único teatro de ópera do país, também é verdade que a CNB é a única companhia de reportório, depois de extinto o Ballet Gulbenkian, que este ano faria meio século, lembra Taveira. “Temos aqui uma máquina complexa mas com muitas possibilidades. Temos de a deixar andar, fazer coisas.”

Aos 57 anos, e com o seu mandato à frente da companhia a terminar no próximo ano, a directora artística ainda não desistiu da internacionalização e gostaria de ver candidato a fundos europeus um projecto de intercâmbio – o European Dance Exchange – que tem vindo a trabalhar com vários teatros e companhias na Bélgica, Itália, França ou Polónia. Para isso conta com a experiência de Sandra Castro Simões, a nova administradora do Opart, responsável pela área financeira.

“Os nossos bailarinos têm qualidade, o nosso reportório tem qualidade. É preciso que outros o vejam. Temos trabalhado com os coreógrafos, os compositores, os músicos, os poetas, os dramaturgos… A companhia tem sabido responder mesmo em tempos de crise, com cortes orçamentais muito sérios.” A companhia, como o corpo de Barbora Hruskova, é um corpo que merece dançar – mesmo quando é difícil.

 

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