O amor apesar do orientalismo

Caligrafia árabe, formas geométricas da arte islâmica, clichés. O quarto álbum de Craig Thompson chegou finalmente ao mercado nacional

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Uma obra sumptuosa que explora a caligrafia e o alfabeto árabe, que integra na narrativa as formas geométricas da arte islâmica (563-564).

Quatro anos depois do seu lançamento pela Top Shelf, Habibi, de Craig Thompson, conhece, finalmente, a edição portuguesa. É um atraso considerável, mas que facilita um olhar menos comprometido com as posições irreconciliáveis que o livro suscitou. Descrevam-se aqui as duas: uma laudatória, entusiasmada, que colocou Habibi nos tops de fim de ano; a outra céptica, fortemente crítica, quando não condenatória, da obra e do autor. Significa isto que o livro perdeu actualidade e, com esta, a capacidade de motivar discussão? Não, pelo contrário. Na verdade, os encómios e as “censuras” que sobre ele se fizerem continuam pertinentes. Habibi é, graficamente, uma obra sumptuosa que explora a caligrafia e o alfabeto árabe (páginas 38-39), que integra na narrativa as formas geométricas da arte islâmica (563-564). E a habilidade do seu autor não se restringe ao desenho. Na história de Dodola e Zam, as duas personagens principais, entrelaçam-se episódios do Corão e da Bíblia (A arca de Noé, Rei Salomão e Rainha Sabá, Abraão e o Sacrifício de Isaque/Ismael) sem prejuízo do ritmo e da narração. Foi com base nestes elementos, que vários críticos descreveram Habibi como um processo de descoberta e diálogo inter-cultural em banda desenhada, que humanizava uma religião. Já para outras vozes, o “projecto” falhava. Era confuso, ingénuo, ao apropriar-se dos clichés do Orientalismo para construir um galeria de estereótipos – o sultão e o seu harém, a árabe exótica, o árabe selvagem e dono de escravos – a que correspondiam representações inusitadas de violência (raptos, estupros, assassinatos).

Os dois pontos de vista são justos – Habibi é um livro dividido, que não se concilia consigo mesmo – mas não totalmente. A presença da caligrafia árabe e as formas geométricas torna-se, por vezes, excessiva. Para lhes dar sentido, para que sejam mais do que meros elementos decorativos, o leitor tem que as manter em articulação constante com o texto e os restantes desenhos, o que nem sempre é fácil num livro de quase 700 páginas. Quanto à filiação orientalista da Habibi, ela tem o condão de colocar uma pergunta: manchará inevitavelmente um livro? Até que ponto? Não será possível vê-la com a mesma significação que determinou tantos exemplos do cinema de Hollywood? E se sim assim for, o que deve fazer o leitor? Rejeitá-la, sem hesitar, ou confrontá-la com a sua experiência e memória?

A inocência perigosa ou falsa de Craig Thompson é mais ambígua do que parece. O blogger Nadim Damluji insinuava que ao desenhar Dodola a tirar o hijab (página 615), Thompsom estaria a dizer-nos que a personagem encontrara a modernidade (ocidental). O gesto de paternalismo do autor surgiria óbvio. Mas na prancha seguinte (página 616), Dodola volta a envergar o hijab e só o tirará para agasalhar uma criança (pagina 657). Este e outros detalhes (a amizade entre os escravos, o homem que acolhe e ajuda Dodola e Zam) desviam Habibi de uma adesão completa ao Orientalismo e, revelam, afinal, a história que o sustenta: a da relação amorosa entre Dodola, mulher árabe, e Zam, negro. Ambos tornados escravos, resistem a todo tipo de tragédias, inclusive às que se abatem sobre os seus corpos e sentimentos, transformando-os. De mãe e filho, passam a irmã e irmão antes de acabarem como amantes/marido e mulher. E pelo caminho derrotam a miséria que os sujeitara à violência, motivados por um único fim: o amor. É a forma como Thompson desenha essa travessia, reunindo elementos do melodrama e recursos como o suspense, que empurra Habibi para um lugar onde nem tudo se reduz ao Orientalismo.

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