Stuart Holland: “Este é ‘o’ momento de viragem da Europa”

Amigo de Yanis Varoufakis, este ex-conselheiro de Jacques Delors e de António Guterres revela o que pode acontecer na cimeira extraordinária do Ecofin na próxima semana.

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“A Economia é um jogo de linguagem privada jogado por economistas profissionais com pouco ou nenhum respeito pelo mundo real” Miguel Manso

Stuart Holland, 75 anos, passou os últimos 30 anos a defender algo que agora pode impedir “a desagregação da Europa”. É um economista sui generis. Começou por estudar História e Ciência Política e só depois fez um doutoramento na ciência que domina os nossos dias. Holland é um perito em chancelarias.

Do número 10 de Downing Street, onde começou, como conselheiro de Harold Wilson, aos labirintos da Europa. Negociou com De Gaulle, escreveu memorandos para Helmut Kohl. Lembra como Guterres podia entrar isolado no Conselho Europeu e sair de lá com um voto unânime. Estas e outras memórias fazem parte do livro Europe in Question: and what to do about it, que acaba de publicar. No final, como anexo, inclui a última versão da Modesta Proposta para solucionar a crise da zona Euro, que escreveu com o ministro grego das Finanças, Yanis Varoufakis, e com o economista americano James K. Galbraith. No próximo dia 12 vai estar em Londres, a debater com Vítor Constâncio, do BCE. Em Coimbra, onde reside há dez anos, e é professor visitante na Faculdade de Economia, vai organizar, entre 28 de Fevereiro e 28 de Março, um seminário chamado: Depois do êxito do Syriza

No seu livro, bem como na Modesta Proposta… que assinou com Yanis Varoufakis, agora ministro na Grécia, argumenta que a Europa pode recuperar economicamente, na linha do New Deal de Roosevelt, sem que sejam criadas novas instituições, revistos os Tratados, nem ajudas dos países mais fortes. Como?
As instituições já existem. O Banco Europeu de Investimentos (BEI) e o Fundo Europeu de Investimentos, que eu sugeri quando aconselhava Jacques Delors [Presidente da Comissão Europeia] nos anos 90. Como? Através da emissão de obrigações. Como Roosevelt fez, para financiar os investimentos sociais e ambientais do New Deal que reduziram o desemprego, entre 1933 e a Segunda Guerra Mundial, de 25% para menos de 10%. E isto foi feito com um déficit orçamental médio de 3% - o limite de Maastricht…

Mas isso vai contra aquilo que a Alemanha tem defendido. Não acredita que Berlim pode bloquear essa proposta?
Não. Há um procedimento que não depende da unanimidade, na Europa, chama-se “cooperação reforçada”. A Alemanha usou-o recentemente para ultrapassar David Cameron quando propôs uma taxa sobre as transacções financeiras. Outros estados-membros que desejem recuperar economicamente podem usar este mecanismo, se necessário, para contornar a posição da Alemanha.

Poucos serão os políticos europeus, nesta altura, que tenham equacionado essa hipótese… 
Jean-Claude Juncker, François Hollande e os seus ministros da Economia e das Finanças, Michel Sapin e Emmanuel Macron, Matteo Renzi e o seu ministro das Finanças, Pier Carlo Padoan, o ministro polaco das Finanças Mateusz Szczurek e, é claro, Yannis Varoufakis.

Mas ainda não os vimos agir, pois não?
O desrespeito da Alemanha pelas posições do Syriza e a necessidade de evitar uma Grexit [saída da Grécia do Euro] podem ser o catalisador.

Mas há um argumento de peso na posição alemã: Não se pode resolver uma crise de dívida aumentando o montante da dívida. Não concorda?
Os empréstimos do BEI não são contabilizados como dívida pública. Nem o seriam as obrigações emitidas pelo Fundo Europeu de Investimentos. Seria necessário que ambas as instituições funcionassem, neste plano, porque as regras do BEI apenas lhe permitem financiar metade dos projectos, sendo a outra metade da responsabilidade dos estados-membros. E os Estados sentem dificuldades para co-financiar projectos com o BEI desde que surgiu a crise na Zona Euro. O BEI tem também uma grande dependência, no financiamento das suas obrigações, de fundos de pensões, que são muito conservadores. Pelo contrário, o Fundo poderia emitir obrigações que reciclassem os excedentes financeiros, que é algo que os BRIC [Brasil, Rússia, Índia e China] querem. Em Dezembro, o ministro da Economia da África do Sul disse publicamente que se a Europa emitisse estes títulos, eles investiriam. No primeiro discurso de Juncker, no Parlamento Europeu, de 15 de Julho, das suas dez prioridades, a primeira era esta. Temos tido aliados importantes, há décadas, nesta proposta, incluindo Jacques Delors e António Guterres.

Quanto tempo trabalhou com Delors?
Depende como definir “trabalho” [risos]. Mas foi de 1975 até 1995. Fomos ambos conselheiros de primeiros-ministros e ambos nos demitimos, por acreditarmos em valores, o que não era uma coisa comum. Depois ele tinha-me pedido que desenhasse algumas políticas e instituições que contrariassem o pendor deflacionário das condições impostas em Maastricht sobre o déficit e a dívida. Eu recomendei-lhe o Fundo Europeu de Investimentos, que ele criou em 1994.

Depois, tornou-se num conselheiro externo de Guterres? 
Sim. Eu só conheci Guterres quando ele foi eleito primeiro-ministro, mas a recomendação para que nos encontrássemos partiu de Jorge Sampaio, que eu conheço desde os anos 70. Os meus conselhos beneficiaram de trabalhar com o primeiro-ministro um assessor [diplomático] excepcional, o embaixador José Freitas Ferraz. Costumava ligar-me sempre, antes dos Conselhos Europeus, pedindo-me sugestões. Havia muitas, que Delors não conseguiu levar adiante. Aconselhei Guterres que devíamos clarificar o âmbito do BEI, que era vago, “o interesse geral da Europa”, para que investisse em projectos relacionados com Saúde, Educação, reconversão urbana, novas tecnologias e Ambiente. Tudo são áreas sociais, semelhantes às do New Deal de Roosevelt. Freitas Ferraz disse-me: “Stuart, renovação urbana… Nós vivemos em sociedades urbanas. Isso pode significar qualquer coisa, não é?” Era precisamente o que eu queria dizer [risos]. Exactamente, respondi. Nesta questão demorou três reuniões do Conselho para ganhar. Helmut Kohl [ex-chanceler alemão], opunha-se. Dizia que os contribuintes alemães já pagavam demais. Ou seja, não percebia que um título do BEI não seria pago pelos contribuintes alemães, e não precisa de transferências orçamentais da Alemanha. Freitas Ferraz sugeriu que devíamos escrever um memorando para Kohl. Eu sei algum alemão, mas não me atrevi. Escrevi em inglês e pedi para traduzirem. “Caro chanceler, aproxima-se o conselho de Amsterdão [Junho de 1997] e, sem dúvida, o primeiro-ministro português vai, mais uma vez, levantar a questão dos investimentos do BEI…” Kohl aceitou. 

Acha que Guterres está disponível para se candidatar nas eleições presidenciais?
Ficaria encantado. Como português honorário, e cidadão que reside aqui, consideraria uma hipótese excelente. Eu sei que ele tem sido muito criticado, internamente, em Portugal. Mas a um nível europeu, ele foi o chefe de Governo mais eficaz com quem trabalhei. E eu faço isso desde 1965, quando comecei a trabalhar com Harold Wilson [ex-primeiro-ministro do Reino Unido].

Outra pessoa com quem trabalhou, Yanis Varoufakis, é agora ministro das Finanças na Grécia. Como tem visto a sua actuação? 
Ele é muito, muito excepcional. Ele, como eu, não se deixa enredar nos mitos nem na técnica. A Economia é um jogo de linguagem privada jogado por economistas profissionais com muito pouco, ou nenhum, respeito pelo mundo real. Temos de conhecer a linguagem e os conceitos para contornar os austeritários, e Yanis conhece-os. 

E é por isso mais eficaz? 
Sim. Schäuble [ministro das Finanças alemão] é um advogado, Angela Merkel [chanceler alemã] é formada em Física. Eles não são capazes de perceber o que a Europa pode fazer com as instituições que tem, e estão presos à ideia de que se equilibram orçamentos reduzindo déficit e a dívida. E isto tem muito a ver com a história e a cultura alemãs. Por exemplo, a maioria dos alemães está convencida que foi a inflação que levou Hitler ao poder. Mas não foi. Foi a deflação, a austeridade, os cortes, a partir de 1929, quando o partido Nazi tinha menos de 3%. Depois da austeridade esse número foi multiplicado por 10, em 1933. 

O plano de reestruturação da dívida de Varoufakis é plausível?
Parece-me acertado, em dois aspectos. Atrasar indefinidamente o pagamento de um título é absolutamente normal. O Banco de Inglaterra ainda estava, muito recentemente, a “rolar” o pagamento de títulos de dívida que emitiu para financiar as guerras napoleónicas! Em 1751 toda a dívida inglesa foi convertida em dívida perpétua. O que é muito simples: os títulos de dívida não têm de ser pagos à cabeça. Numa recessão como estas, o valor das acções é tão baixo, e o risco das economias colapsarem é tão alto, que os investidores não querem tirar o dinheiro investido em dívida. Basta-lhes o que recebem de rendimentos das obrigações. O segundo aspecto que me parece excelente, e é baseado na nossa Modesta Proposta, é provocar a recuperação da economia sem que se aumente a dívida pública. Precisamente, através do BEI e do FEI, com títulos emitidos para a recuperação da economia europeia. 

Esse tem sido um dos pontos que mais tem defendido, com Varoufakis. Desde a quebra de Wall Street, o Mundo deixou de ter um sistema de reciclagem desses excedentes. A Europa podia fazê-lo?
Isso podia ser feito, em conjunto, pelo Fundo Europeu de Investimentos e pelo BEI. O primeiro a nível “macro”, seria o mecanismo de reciclagem de excedentes que financiaria os projectos que o segundo apoiaria, a uma escala quase ilimitada.

Este é um momento de viragem?
É potencialmente “o“ momento de viragem. Varoufakis vai argumentar isso mesmo na reunião extraordinária do Ecofin, na quarta-feira, onde é provável que consiga o apoio de Macron, Sapin e Padoan. E também, provavelmente, do ministro inglês, George Osborne, que já defendeu eurobonds, dizendo que isso seria bom para as exportações inglesas. Ele não tem nenhuma razão para mudar de ideias esta semana, quando o Reino Unido enfrenta um substancial, e crescente, déficit comercial. A Alemanha precisa de recuperar. A economia europeia está em recessão. O desemprego está a um nível intolerável. Há o risco de desintegração. Marine Le Pen lidera as sondagens. Com este nível de austeridade, se David Cameron [primeiro-ministro inglês] precisar de fazer maioria com o UKIP [partido eurocéptico] e convocar um referendo à continuação na UE, esse referendo será provavelmente perdido… Neste momento, porquê votar pela Europa se a Europa apenas oferece austeridade?

Mas ainda assim está optimista?
Nem optimista, nem pessimista. Pragmático.  Mas tenho alguma experiência de convencer as pessoas contra todas as probabilidades. Consegui convencer De Gaulle [risos].

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