Já percebemos o que é a dieta mediterrânica?

Há um ano, a alimentação da zona do Mediterrâneo foi inscrita como Património Imaterial da Humanidade. Mas, um ano e muita conversa depois, saberemos realmente o que ela é? Falámos com dois especialistas para procurar resposta para perguntas que (ainda) tínhamos sobre a dieta mediterrânica

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Há décadas que Maria Manuel Valagão estuda a alimentação mediterrânica e a sua relação com o território português. Anteriormente, não falava de “dieta”, porque considera que é algo que vai muito para além da comida, mas hoje já adoptou o termo. Investigadora do Instituto de Estudos de Literatura Tradicional – Património, Artes e Culturas da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é autora de dois textos fundamentais no livro A Dieta Mediterrânica em Portugal: Cultura, Alimentação e Saúde, lançado no ano passado pela Universidade do Algarve e que inclui artigos de vários especialistas.

Jorge Queiroz, que foi o responsável técnico pelo processo de candidatura à UNESCO, é também autor de um livro, com fotografias de Luís Ramos, intitulado Dieta Mediterrânica – Uma Herança Milenar para a Humanidade (althum.com), lançado em Dezembro passado, por altura do primeiro aniversário da consagração da dieta mediterrânica e que contextualiza a questão da alimentação na história e na cultura do Mediterrâneo.

O Mediterrâneo é um “mar entre as terras”, interior, relativamente pequeno, cuja força está no facto de ligar três continentes, Europa, África e Ásia. Banha 23 países, mas a sua influência, nomeadamente climática estende-se além disso (e por isso podemos dizer que Portugal é um país mediterrânico). Foi desde sempre um espaço de contacto entre os povos, de trocas culturais e comerciais. A 4 de Dezembro de 2013, a UNESCO reconheceu a dieta mediterrânica como Património Imaterial da Humanidade a partir de uma candidatura apresentada por Itália, Espanha, Marrocos, Grécia, Chipre, Croácia e Portugal.

Norte e Sul

Como pode Portugal pertencer aos países da dieta mediterrânica se não é banhado pelo Mediterrâneo e se o Norte do país não tem um clima mediterrânico?

Foi Orlando Ribeiro, o autor daquela que continua a ser a grande obra de referência sobre o tema, Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, quem melhor definiu as diferenças entre o Norte de influência atlântica e o Sul mediterrânico. Mas, como diz Maria Manuel Valagão, “não faria sentido apresentarmos [na candidatura à classificação da dieta mediterrânica] apenas o Sul, com o Algarve e o Alentejo”.

Além disso, sublinha, quando falamos de dieta mediterrânica falamos de muito mais do que de alimentação. Na classificação da UNESCO, “o significado de dieta apoia-se na derivação grega diaita, a qual significa estilo de vida, relação entre corpo e espírito, corpo e meio ambiente, englobando ainda a produção, comercialização, comensalidade, ritual e simbologia alimentar”. E esse é um estilo de vida que encontramos tanto no Norte como no Sul. Isso e o vinho e a oliveira — entende-se que o espaço mediterrânico vai até onde chegam as oliveiras, e em Portugal há olival de norte a sul (é preciso notar, contudo, que mesmo sendo o azeite o grande alimento mediterrânico há países onde a sua importância é muito menor, como o Egipto ou Israel).

Maria Manuel Valagão recorda os trabalhos que fez no Douro no final dos anos 1970 e nos anos 1980 e como a alimentação era, tal como no Sul, de proximidade e subsistência. Mas havia diferenças nítidas. “No Norte ninguém conhecia um orégão ou um coentro para usar na alimentação. As únicas ervas que usavam era salsa e louro”. As diferenças estão também no clima e nos terrenos, com “os calcários no Sul, o granito e o xisto no Norte”. Mas o importante, insiste, é que o que estamos a patrimonializar com a dieta mediterrânica são “os modelos de alimentação familiar, do quotidiano e rural”, e todo o estilo de vida a eles ligado — a já referida diaita.

“O que define a dieta mediterrânica não é o clima nem a geografia”, concorda Jorge Queiroz. “Há climas mediterrânicos em vários continentes, no Chile, na África do Sul, nos Estados Unidos. O que a define é a cultura.” O que aconteceu, explica, é que o conceito acabou por surgir nos anos 1970 com um fisiólogo, [o norte-americano] Ancel Keys, que tinha um ponto de vista muito ligado à sua especialidade, a nutrição. Daí o enfoque nos alimentos e nos resultados deste tipo de alimentação para a saúde, o que deixou para segundo plano toda a questão do estilo de vida.

O importante agora que se conseguiu o reconhecimento da UNESCO, conclui Maria Manuel Valagão, é que entendamos que “comer não é apenas uma questão de ingestão de alimentos, mas é um acto social e cultural”. E aí, Portugal é mediterrânico do sul ao norte.

O vinho

Se o vinho não é consumido nos países muçulmanos da margem sul do Mediterrâneo, como é que pode ser parte integrante da dieta mediterrânica?

Há, de facto, uma fronteira, traçada pela religião. Para norte, o vinho, para sul, não. “Enquanto o olival surge como o grande elemento de unidade entre os espaços culturais mediterrânicos, a vinha é a grande linha de demarcação na paisagem entre os mundos cristão e islâmico”, escreve Jorge Queiroz.

Em conversa com a Revista 2 sublinha que este “é um assunto que ainda exige investigação”, mas lembra que a ocupação árabe do Magrebe acontece a partir do século VIII e que até então habitavam na zona populações “que não falavam árabe e tinham outro tipo de cultura, como os berberes ou os tuaregues”.

A proibição do vinho, que surge com os árabes, é uma imposição religiosa, porque “a intervenção da religião faz-se muito procurando a identidade, a diferenciação”. E ser diferente, para um muçulmano, significava, entre outras coisas, não beber álcool. Mas antes disso, refere no livro, “sabe-se que o Antigo Egipto e as gentes da Palestina, Fenícia, Grécia e Roma eram grandes produtores e mercadores de vinho e divulgadores da plantação da vinha”. E foram os romanos “os grandes divulgadores da cultura da vinha e do vinho por todo o Mediterrâneo e também na Península Ibérica, onde o produziam com qualidade nas suas inúmeras villae”.

Maria Manuel Valagão, que conhece muito bem a cozinha algarvia, lembra por outro lado que a presença do vinho na alimentação dos portugueses também tem sofrido alterações: “Aqui no Algarve, a memória que as pessoas têm é de que o vinho não se bebia nas refeições do dia-a-dia. Passou a ir para a mesa dos algarvios já depois dos anos 70. O vinho era uma coisa dos dias de festa e da convivialidade masculina. Mas era também importantíssimo pelo vinagre”, produto muito usado na cozinha local, “seja para as sopas frias no Verão, seja para refrescar uma sopa quente”. Aliás, toda a presença do ácido é muito importante na cozinha algarvia, onde o limão é também elemento fundamental.

A carne de porco

E o que acontece com o porco? O problema é o mesmo que com o vinho: na margem sul do Mediterrâneo não se consome e em países como Portugal tem uma enorme importância. Afinal, o porco é mediterrânico ou não?

A questão é a mesma: no que diz respeito à carne de porco, judeus e muçulmanos estão de um lado, cristãos do outro. E no Portugal maioritariamente cristão o porco é um animal sempre presente. “O que predominava no passado era o porco selvagem, o javali”, afirma Jorge Queiroz. “Mais tarde começa a haver criação de porcos, mas sempre no espaço doméstico, não é uma cultura intensiva. Pedaços do animal eram depois usados como conduto nos pratos, nas sopas.”

Na Alta Idade Média, o consumo do porco era muito importante, mas, dentro da alimentação de subsistência que é a mediterrânica, todo o animal era aproveitado (a matança do porco é, ainda hoje, o melhor exemplo disso). O arqueólogo Cláudio Torres, citado por Queiroz, afirma que “a carne mais apreciada no Mediterrâneo foi sempre o carneiro e o borrego”, como, aliás, continua a ser no Norte de África. E refere a imposição por parte da Inquisição do consumo de carne de porco “como prova da fidelidade cristã”. Trata-se, contudo, de um animal que não se dá bem em climas muito secos, e que por isso se adapta melhor ao Norte do que ao Sul de Portugal.

Os bois eram usados sobretudo como animais de trabalho e por isso não havia o hábito de comer estas carnes, a não ser em alturas excepcionais. Mas aí já estamos noutra fronteira. Escreve Jorge Queiroz: “O consumo de carne marca a linha de fronteira entre o mundo civilizado e os bárbaros, entre o mundo mediterrânico e o ‘mundo carnívoro’ dos homens da guerra e do saque vindos das regiões frias do Norte.” E a esse propósito cita ainda Massimo Montanari, especialista italiano na história da comida, que fala da “civilização da carne contra a do pão, a civilização do leite contra a do vinho, a civilização das manteigas contra a do azeite”. Foi essa influência dos povos do Norte (o “modelo germânico”) que fez aumentar no Sul (greco-romano) o consumo de carne, leite e manteiga, hoje um padrão instalado.

Os cereais e o pão

Se a dieta mediterrânica se caracteriza por uma forte relação entre a paisagem e a alimentação, como se explica que Portugal tenha dificuldade em produzir cereais mas seja um grande consumidor de pão?

Um dos grandes traços comuns entre as populações do Mediterrâneo é o consumo de pão e cereais. Mas é verdade que Portugal sempre teve problemas em garantir uma produção suficiente. “No Algarve, por exemplo, a produção era insuficiente para as necessidades de consumo”, afirma Maria Manuel Valagão. “Os almocreves iam pelos montes levar o peixe e a fruta e traziam o pão para baixo”, recorda, frisando que o Norte “adoptou mais o milho e o centeio” do que o trigo.

Mas nem todo o Mediterrâneo come o mesmo pão, nem da mesma forma (em Itália os cereais são muito utilizados na grande variedade de massas, por exemplo). Uma das características que, segundo a investigadora, torna Portugal um caso particular é a riqueza do receituário com pão, das sopas às migas, aos ensopados e até à doçaria. Se, dentro do quadro mediterrânico, quisermos diferenciar Portugal, temos então esta cozinha de tacho (e o tacho implica sempre uma refeição comunal), muito ligada às sopas e ao pão. “O termo sopa é dos poucos que não têm origem latina, mas sim germânica”, explica. “Significa um bocado de pão embebido num caldo bom. O pão fica duro ao fim de dois dias, as pessoas usam o que têm, fazem um bom caldo aromatizado… é a origem da açorda. E, apesar de se comer mais no Alentejo, a açorda é um prato nacional, que se encontra também no Norte. Cada um faz a sua açorda.”

E há ainda, sobretudo no Algarve, o xarém, as papas de milho, comidas com tudo, desde as simples às com carne de porco ou com bivalves: conquilhas, amêijoas ou berbigão. Diz Maria Manuel Valagão: “A maior parte do Algarve é rural e interior, as pessoas moíam o milho para consumo próprio (ao contrário do Norte, onde a produção se destinava ao fabrico do pão, no Sul o milho era plantado em pequenas hortas individuais) e algumas vendiam-no ou trocavam-no com as do litoral. Hoje vê-se que cada vez mais compram o milho, em saquinhos, para fazer o xarém. Vejo que o que foi abandonado voltou a vender-se e começa a ser recuperado com prazer.”

No seu livro, Jorge Queiroz recua às raízes históricas da relação entre os homens e os cereais, e cita o historiador Fernand Braudel quando este escreve que “o trigo e o pão são os tormentos sempre eternos do Mediterrâneo, as personagens decisivas da sua história”. Vindo do Médio Oriente, o trigo (o selvagem tetraplóide deu origem a espécies domesticadas como o duro, o mole, o espelta, a cevada e o centeio) espalhou-se pelo Mediterrâneo, em grande parte com os romanos, já com culturas cerealíferas intensivas, que vieram substituir o hábito de comer bolota e castanha. Só mais tarde, nos séculos XV e XVI, com os Descobrimentos, é que chegaria o milho, vindo da América do Sul. Podemos não produzir muitos cereais, mas não nos alimentamos sem eles.

Peixe

Em Portugal, o peixe vem do Atlântico. Isso não nos torna diferentes dos outros países, que pescam no Mediterrâneo?

É um facto que as cozinhas mediterrânicas, apesar de terem elementos comuns, são muito diferentes (basta pensar, por exemplo, na cozinha francesa, onde, por influência do Norte, a presença de gorduras animais, do foie-gras à manteiga e ao queijo, é muito maior do que na maioria do Mediterrâneo). E no que diz respeito ao peixe, Portugal distingue-se dos outros países por o consumir muito mais (sendo mesmo o terceiro maior consumidor mundial per capita, a seguir ao Japão e à Islândia).

Apesar de o peixe ser naturalmente muito mais abundante na costa do que no interior, temos também peixe de rio, e, como recorda Jorge Queiroz no seu livro, o país é pequeno e o peixe chega rapidamente e ainda fresco a todo o lado: “Os peixes do mar chegam em pouco tempo ao interior mais distante, onde são culinariamente personalizados com ervas aromáticas dos campos e das ribeiras.” Mas, refere o autor, é precisamente o “elevado consumo de peixe” (capturam-se regularmente mais de 50 espécies) que, juntamente com “a grande variedade de sopas”, distingue a “dieta mediterrânica portuguesa”.

Queijo

Que papel têm os lacticínios na alimentação mediterrânica?

Não são um elemento fundamental, embora sejam consumidos, sobretudo sob a forma de manteiga ou queijo, e menos de leite. No entanto, Grécia e Itália, por exemplo, consomem mais queijo e integram-no nas suas alimentações de uma forma diferente da dos portugueses. “O queijo é muito importante como alimento em si”, afirma Maria Manuel Valagão. Ou seja, em vez de carne ou de peixe, o queijo aparece como complemento de uma sopa, por exemplo (como acontece em algumas açordas), ou simplesmente comido com pão e um pouco de vinho. “Quando a refeição era mais fraca, só uma sopa, comia-se depois o queijo com mel e pão”, recorda.

Doces

À base de ovos e açúcar, a doçaria tradicional portuguesa é bastante diferente da de outros países mediterrânicos, que usam muito o mel e os frutos secos. Pode ser considerada mediterrânica?

A doçaria portuguesa está muito ligada à festa, por um lado, e aos mosteiros e conventos por outro, explica Jorge Queiroz. A tradição dos ovos e do açúcar vem dessa especialização das freiras num tipo de doces muito particular. Mas o mais importante, sublinha, é percebermos que na alimentação mediterrânica os doces surgem num contexto de festa. Se a dieta mediterrânica é por um lado equilibrada e com elementos de frugalidade, por outro integra os momentos de excesso.

Num dos textos que escreve e onde analisa a cozinha algarvia, Maria Manuel Valagão fala também dos doces: “De herança árabe adoptada e adaptada ao contexto local, são alguns dos doces e bolos — queijos de figo, doces de amêndoa, filhoses em calda... — à qual se veio associar posteriormente, já nos séculos XVII e XVIII a influência da doçaria conventual. Deste conjunto de heranças, saberes e recursos resultou a diversidade e requinte da doçaria algarvia, cuja variedade e notoriedade são por demais conhecidas.”

Futuro

A dieta mediterrânica tornou-se Património da Humanidade. É muito uma alimentação de subsistência, associada à escassez. Que condições temos hoje para a proteger?

A dieta mediterrânica não é estática, há mil anos que está em evolução (veja-se a forma como integrou os novos produtos vindos de outras partes do mundo, como o arroz do Oriente ou o tomate da América Latina). “Ela pode e deve evoluir”, defende Jorge Queiroz. “Pode-se utilizar a dieta mediterrânica de várias maneiras, para dar um cunho de identidade. Na economia global, o que é importante é a diferenciação, aquilo que não existe nos outros lados. É muito importante que Portugal, sendo um pequeno país, perceba que pela riqueza e história que tem, pode perfeitamente ter uma oferta muito interessante. Há aspectos ligados ao turismo cultural, às paisagens da dieta mediterrânica, os itinerários ligados ao azeite, ao vinho. Temos uma diversidade gastronómica fantástica.”

Maria Manuel Valagão reconhece que ainda há alguns estigmas associados à ideia de uma “comida pobre” e que muitas alterações alimentares dos últimos anos (sobretudo o enorme aumento do consumo de carne) têm que ver não apenas com maior disponibilidade mas com ultrapassar o “trauma subterrâneo da pobreza”. Mas vê já uma recuperação de alimentos e práticas que há uns anos estavam a perder-se na economia familiar, como as papas de milho ou o uso das leguminosas. “A grande questão é a educação”, diz. “E não pode começar pelo prato mas pela observação dos saberes antigos que souberam recriar esta comida de grandes efeitos a partir de poucos recursos.”

Comemos assim há mais de mil anos, lembra a investigadora. Foram muitos séculos de afinamento e aperfeiçoamento de modos de produção, modos de conviver associados a uma alimentação que, no seu conjunto, se vieram depois a reconhecer como saudáveis e equilibrados. Mas esse equilíbrio só existirá se estiverem presentes todos os elementos implícitos no conceito de diaita. E isso significa respeitar os ciclos da natureza, aproximar a produção da comercialização, estar próximo, comer em conjunto.

“Não é de forma nenhuma um regresso ao passado, a uma agricultura de subsistência”, reforça também Jorge Queiroz. É, entre outras coisas, “reconhecer que a mesa é um lugar fundamental na dieta mediterrânica, é um lugar de transmissão de conhecimento”. E que (também) pertencemos ao Mediterrâneo, “esse ‘mar entre as terras’ cuja influência ultrapassou a sua própria geografia.”

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