Filipe Nyusi chega à Presidência com sombras sobre Moçambique

Renamo e dúvidas sobre autonomia face ao antecessor marcam início de mandato do quarto chefe de Estado do país: Filipe Nyusi, um “produto da Frelimo”.

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Novo Presidente teve um percurso político discreto GIANLUIGI GUERCIA/AFP

Quase desconhecido para muitos moçambicanos há um ano, Filipe Nyusi toma esta quinta-feira posse como Presidente da República. A sua entrada no Palácio da Ponta Vermelha representa a chegada ao poder de uma geração que já não combateu na guerra da colonial. A forma como lidará com a Renamo, antiga guerrilha, que há dias ameaçou criar uma “república do centro e Norte”, a autonomia que terá face ao antecessor e a resposta que der à pobreza são incertezas no início do novo ciclo.

Com uma carreira política discreta, sem que tenha ocupado cargos de relevo no partido governamental Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), Filipe Nyusi, 55 anos, ministro da Defesa entre 2008 e 2014, tem no relacionamento com a Renamo, Resistência Nacional Moçambicana, um primeiro e decisivo teste. O principal partido da oposição considera fraudulenta a eleição e insiste em não acatar os resultados do escrutínio. O diálogo, fundamental para a estabilidade do país, não será fácil.

O Nyusi ganhou com fraude. Não queremos chamar Presidente a alguém eleito por fraude”, disse o líder da Renamo, Afonso Dhlakama, numa entrevista ao semanário Savana, após as eleições de Outubro, que atribuíram 57% ao novo Presidente.

Se não é novidade a contestação da Renamo a eleições, desta vez Dhlakama foi mais longe do que alguma vez tinha ido: no passado fim-de-semana, anunciou a criação de uma república do centro e norte de Moçambique, da qual seria o presidente, e declarou que nomearia governadores e administradores de seis das dez províncias do país: Sofala, Tete, Zambézia, Manica, Niassa e Nampula.

Já antes, ao mesmo tempo que declarava que Moçambique não voltará à guerra, o líder da oposição reclamou a formação de um governo de gestão, para o qual indicaria nomes. E esta semana boicotou a tomada de posse dos 89 deputados que a Renamo elegeu para o Parlamento e dos representantes do partido nas assembleias provinciais. 

O porta-voz da Frelimo, Damião José, considerou uma “aberração” o comportamento da Renamo. Mas o papel do novo Presidente – o quarto do país, depois de Samora Machel, Joaquim Chissano e Armando Guebuza – é outro: num regime presidencialista como é o moçambicano cabe-lhe liderar o diálogo com quem não o reconhece e trabalhar para a consolidação de uma paz que o passado tem sempre revelado ser precária.

Depois da longa e mortífera guerra Frelimo-Renamo, que entre 1976 a 1992 custou um milhão de vidas, Moçambique voltou ao conflito, embora circunscrito e não oficialmente declarado, em 2013-2014. Em vésperas das eleições de Outubro foi alcançado um acordo para pôr fim à violência, mas o processo negocial, que deveria prosseguir com a integração e desarmamento dos homens da Renamo, marca passo desde então.

“Produto da Frelimo”
Nascido em 1959 em Namau, distrito de Mueda, província de Cabo Delgado, Filipe Nyusi é filho de camponeses que aderiram à Frelimo. Na infância viveu de perto a luta armada contra Portugal. A biografia partidária apresenta-o como um “produto da política de formação de quadros da Frelimo”, de que é militante desde a adolescência. 

A sua escolha para candidato pelo partido que governa desde a independência, em 1975, teve um significado particular. O agora Presidente, um maconde, etnia que se distinguiu na luta contra o domínio português, é o primeiro Presidente do Norte. Nasceu em Cabo Delgado, um bastião da Frelimo, onde em 1964 começou a guerra colonial em Moçambique. Concilia em si facto de ser filho de antigos combatentes com a origem geográfica e a pertença a uma “nova geração”.

Filipe Jacinto Nyusi ingressou na Frelimo aos 14 anos, em 1973, e fez preparação político-militar em Nachingwea, na Tanzânia. No ano seguinte, completou os estudos primários no Centro Educacional de Tunduru, também no país vizinho. Foi já depois da independência, a que assistiu com 16 anos, que cumpriu a escolaridade secundária.

Formado em Engenharia na academia militar Vaaz, de Brno, na então Checoslováquia, em 1990, na fase final do antigo Bloco do Leste, fez carreira como gestor na empresa Portos e Caminhos-de-Ferro de Moçambique, em Nampula, cidade onde também deu aulas na Universidade Pedagógica. Até chegar à ribalta política era, para muitos, mais conhecido como dirigente do Clube Ferroviário de Nampula, a que esteve ligado entre 1995 e 2005, e que foi campeão moçambicano de futebol, em 2004.

Casado, quatro filhos, Nysui mudou-se de Nampula para Maputo, onde, entre 2007 e 2008, foi administrador executivo da empresa em que sempre trabalhou, até ser chamado por Armando Guebuza para ministro da Defesa, cargo em que ficou até ser escolhido para a corrida presidencial. Era o titular da pasta quando as Forças Armadas atacaram a base onde estava Dhlakama, em 2013.

A papel de Guebuza
A generalidade dos observadores da política moçambicana considera que a opção da Frelimo por Nyusi foi um triunfo da “ala Guebuza” sobre os que no partido defendiam reformas e apostaram na alternativa Luísa Diogo. E que o Presidente que esta quinta-feira deixa o cargo, por estar impedido constitucionalmente de concorrer a um terceiro mandato, continuará a ter influência determinante na governação.

Numa entrevista ao PÚBLICO, em Julho passado, Armando Guebuza disse que Nyusi é “uma pessoa adulta, comprovadamente responsável” e insurgiu-se contra os que entendia retirarem-no “automaticamente da lista das pessoas que possam ter uma opinião sequer no processo futuro”. “Sempre que me virem falar com ele vão dizer: ‘Aí está ele, está a influenciar.’”

A sombra do antecessor pode ser um problema para Nyusi, uma vez que que não há notícia de que Guebuza venha a deixar a liderança da Frelimo, o que acontece pela primeira vez – há dez anos Chissano deixou de ser chefe do Estado e também líder do partido – e está longe de ser irrelevante num país onde Estado e partido se confundem.

Fernando Lima, jornalista e administrador do grupo que edita o semanário Savana e o diário Mediafax, disse recentemente à Lusa que Filipe Nyusi “tem vindo a ganhar o seu espaço e apoios, no sentido de demonstrar que não será um refém da nomenklatura central do partido”. A composição do seu Governo e as prioridades que anunciar serão os primeiros sinais sobre a orientação que quererá dar à sua governação.

O descontentamento de muitos sectores da população com a Frelimo, traduzido na perda de 47 deputados, mas também em inéditas manifestações de rua nos anos mais recentes, é um problema a que a agenda do novo Presidente não poderá deixar de dar atenção. O contraste entre um crescimento económico continuado da ordem dos 7%, que favorece uma elite dirigente e empresarial, e a pobreza da esmagadora maioria da população é outro dos desafios que tem pela frente. Face às críticas sobre o discurso da “continuidade” com que o seu partido abordou a campanha eleitoral, o agora Presidente fez uma pequena adaptação. “Há algum problema em continuarmos e introduzirmos mudanças?”, disse, num comício, em Manhiça, Gaza.

Depois de conhecidos os resultados eleitorais, anunciou um governo "de inclusão”, explicando querer com isso criar “oportunidades para todos”. Se essa é uma resposta às críticas de arrogância atribuída nos últimos anos à Frelimo, ao desejo de paz e à dependência de três quartos da população da economia informal, quando se perspectivam receitas milionárias na exploração de gás natural, é o que os moçambicanos vão começar a perceber, agora que Filipe Nyusi irá deixar de ser uma incógnita.

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