Submissão não, antes Demissão

Um jornalista francês reflecte sobre Soumission, o livro de Michel Houellebecq que ficciona uma França islamizada e que chegou às livrarias no dia do ataque à redacção do semanário satírico.

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O livro chegou esta quarta-feira às livrarias AFP

Paris foi atacada na manhã desta quarta-feira. Na terça-feira à noite Michel Houellebecq falou no telejornal.

Impossível não colocar em perspectiva os dois acontecimentos. Se Houellebecq foi a um telejornal, é porque a situação é suficientemente grave para que ele suje as mãos. Parece que o angustiante Soumission está a gerar tanta inquietação e especulação que é preciso restabelecer a calma. Cada livro de Michel Houellebecq traz uma carga de agitação e frenesim. No barulho mediático à volta de Soumission, que foi lançado nesta quarta-feira e que para já poucas pessoas leram, tem havido desta vez a sonoridade desagradável que transpira no ar francês há longos meses: a da angústia perante uma ascensão fulgurante de um islamismo que submeteria, então, a nossa França ancestral às imposições alienantes da Sharia. E, como corolário, a angústia de ver a extrema-direita às portas do poder.

O partido da Fraternidade Muçulmana, no livro, triunfa e dá à França um Presidente muçulmano. Trata-se de um islamismo light, justifica Houellebecq, quase liberal, chegado ao poder sem verdadeiramente grande ruído, sem confrontos, simplesmente engendrado pela incompetência dos dois grandes partidos republicanos da direita e da esquerda, colocando o país, à esquerda e à direita, num pântano. Uma tese que seria imediatamente validada por Marine Le Pen com um diploma de probabilidade, “sendo que direita e esquerda em França há 30 anos…”

Um islamismo porreiro, no livro de Houellebecq, oportunamente aliado ao Partido Socialista para vencer a extrema-direita, mas que, no entanto, exige um refundação do sistema educativo francês sobre uma base islâmica e a reatribuição às mulheres do seu papel de empregada doméstica reprodutora – o que encheria de júbilo os opositores à teoria do género. Seria, afinal, muito natural, prossegue Houellebecq, que os muçulmanos em França tivessem um partido que os representasse, com os seus valores tirados da fonte do Islão.

Em Soumission, como noutros romances de Michel Houellebecq, a foda é omnipresente, o autor deleita-se, com o júbilo que se pode imaginar, com os pormenores mais crus da cópula entre as personagens principais. Mas disso ninguém fala nos media franceses. Foda, carreira, neuroses, desencanto melancólico. Eis personagens pouco simpáticas que se deixam afundar, gemendo timidamente, impotentes, ultrapassadas por um mundo que já não compreendem. Frequentemente sem coluna vertebral, egoístas, as criaturas de Houellebecq chafurdam num lago de mediocridade pequeno-burguesa que é pouco melhorada pelos universos intelectuais, universitários, literários em que evoluem. O autor descreve as pequenas preocupações diárias que anestesiam a alma. O deslize progressivo em direcção à ausência de consciência política. Consciência política que, em vez de ser vivida na carne, estagna no estado da conversa de salão, digressões polidas, mundanas, entre colegas de faculdade.

Do outro lado, à sombra das torres do subúrbio, o infrapovo francês saído da imigração mergulha no obscurantismo, na animalidade, na aculturação. Há “dissidência” também, um género de mixórdia fascizante em que estão aglomerados os jovens brancos enervados que são alimentados a literatura de extrema-direita, saciados pelos sites da Internet, arautos de uma liberdade de expressão que seria sufocada pelo “sistema”, isto é, a política e sua amante, a comunicação social. Como aquele colega professor de universidade que mergulha numa rede oculta de extrema-direita, como aquele marido de uma outra colega que trabalha nos Serviços Secretos franceses.

Houellebecq diverte-se, aliás, a gozar com David Pujadas, apresentador vedeta do telejornal, cobrindo-o com elogios enjoativos, cumprimentos desmedidos, como para sublinhar este estado de prostração que é preciso adaptar para se pertencer a este mundo.

Teorias do complot e do declínio, sexo tintado de misoginia, um fundo antiárabe em surdina, eis os principais ingredientes que o autor agita neste cocktail, encarregando-se de juntar um pouco de água morna para tornar a mistura bebível.

Podemo-nos espantar que um escritor da envergadura de Michel Houellebecq, habituado à ficção prospectiva, tenha escolhido precisamente "O" assunto quente que esgota neste momento a França. Aquele de que já não nos conseguimos desembaraçar e que já fez sofrer tantos e tantos franceses: o da imperceptível islamização destruidora da nossa identidade secular. Mas afinal porque é que o Escritor teria tantos escrúpulos em explorar "O" assunto, quando tantos chefes de redacção, filósofos, políticos, artistas, até homossexuais, jovens manequins, em suma, muitos franceses abdicaram do seu sentido de responsabilidade?

O drama de Paris provoca, por exemplo, isto: a partir de agora alguns dos que corriam pelas entrevistas e plateaux de televisão, alimentando este barulho mediático esgotante, preferem fazer uma pausa. O assessor de imprensa de Alain Finkielkraut ligou, enquanto eu escrevia, explicando que o filósofo já não queria dar entrevistas sobre Houellebecq depois do que acontecera de manhã. Depois de ter defendido abundantemente Soumission nos media. Ah, agora carrega-se no botão pausa. Afinal este fluxo incontinente de falsos medos e de verdadeiras estigmatizações tem consequências graves e agora que os diques cederam, então agora, já não se sabe muito bem o que fazer…

Podemo-nos espantar também com a facilidade com a qual esta classe branca, afortunada, educada, mediatizada, se encena de forma submissa (“soumission”) perante um inimigo interior invasivo, quando esta mesma classe até é a dos dominantes que cede aos medos que ela própria criou, recusando o caminho intelectual e as medidas corajosas que deviam iluminar a nossa época. Submissão não, antes Demissão.

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