Presidente da Turquia não gosta de se ver desenhado em cartoons

Sucessão de processos contra cartoonistas que desenham Recep Erdogan é "indicativa do crescente desrespeito pela liberdade de expressão no país", denunciam organizações internacionais.

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Musa Kart
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Patrick Chappatte
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O confronto não é propriamente uma novidade, mas o Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, parece empenhado numa nova ofensiva contra os cartoonistas da imprensa nacional que insistem em desenhá-lo como um tirano. As pressões editoriais são constantes e os processos judiciais praticamente inevitáveis quando algum editor ousa desafiar a imagem do regime. Para muitos cartoonistas, a publicação de um desenho satírico ou caricatura pode ser a diferença entre a liberdade e a prisão.

“A Turquia tem uma longa e rica tradição de sátira política. Esta nova vaga de assédio judicial aos cartoonistas é indicativa do crescente desrespeito pela liberdade de expressão no país”, observou a The New York Times o analista Alev Yaman, que acompanha a situação na Turquia para a PEN International, uma organização de defesa dos direitos dos media. Os casos recentes de detenções e processos contra cartoonistas e jornalistas “não só representam um ataque à liberdade de expressão e de opinião, como atraiçoam a herança democrática e artística da Turquia”, lamenta.

Yaman está a referir-se a casos como o da detenção e acusação de Musa Kart, um cartoonista cujos trabalhos têm uma forte componente de crítica política. Em Fevereiro do ano passado, Kart publicou um desenho de Erdogan no jornal de oposição Cumhuriyet: a figura do então primeiro-ministro e líder do Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP) assistia placidamente ao trabalho de dois ladrões que esvaziavam um cofre cheio de dinheiro. “Não há problema, o nosso vigilante é um holograma”, dizia um dos larápios.

Nessa altura, várias figuras do Governo de Erdogan enfrentavam acusações de corrupção e desvio de dinheiro. O nome do primeiro-ministro e familiares chegou a ser mencionado em escutas, mas o seu envolvimento no esquema nunca foi provado. Para afastar qualquer tipo de associação à roubalheira, Erdogan processou Musa Kart, que teve de responder por crimes de calúnia e difamação, insulto ao primeiro-ministro e interferência com uma investigação (que culminou com a demissão de três ministros do Governo).

Nove meses depois, o cartoonista – que enfrentava uma pena de nove anos de prisão – foi absolvido pelo tribunal, mas o entretanto eleito Presidente não se conformou com a decisão, e recorreu da sentença. “Este ciclo repetitivo de processos e acções judiciais afecta o trabalho de todos os cartoonistas, jornalistas, escritores e intelectuais turcos”, comentou Musa Kart ao diário nova-iorquino. “Mas não será por isso que deixaremos de trabalhar e exprimir o que pensamos, em prol das próximas gerações”, prometeu o cartoonista, que em 2004 fora multado por desenhar Erdogan como um gato. Também é ele o autor do cartoon “Discurso Político” publicado em 2011, em que no lugar da língua do primeiro-ministro aparece uma mão que borrifa os manifestantes anti-governamentais com gás lacrimogéneo.

Num ambiente restritivo, Musa Kart e outros cartoonistas têm continuado a trabalhar graças à multiplicação de publicações satíricas, a maior parte delas pequenas revistas independentes dos grandes grupos de media que não dependem de licenças governamentais nem sobrevivem pelas receitas publicitárias. Mesmo assim, estas publicações são frequentemente alvo de processos e ameaças.

Em Dezembro, as autoridades iniciaram uma campanha de detenções de directores de jornais e estações de televisão, e várias figuras ligadas aos media, sob suspeita de ligação ao imã Fethullah Gülen, que de aliado político passou a arqui-inimigo de Recep Erdogan. Gulën, que está radicado nos Estados Unidos desde 1998, foi acusado pelo Ministério Público de liderar uma organização criminosa que procura impor um Estado paralelo na Turquia.

Nessa altura, numa rara entrevista ao jornal Hürriyet, o escritor turco e prémio Nobel da Literatura, Orhan Pamuk, denunciou as pressões do regime islamista de Erdogan sobre a liberdade da imprensa, com perseguições e despedimentos de jornalistas, e lamentou o ambiente de medo que o país vive. “Constato que toda a gente tem medo, o que é normal. A liberdade de expressão caiu para um nível muito baixo”.

E não são só os jornais e revistas, cartoonistas e editores, que correm risco. Em Dezembro, um professor de matemática de 29 anos, Bayram Ali Hanedar, imprimiu um cartoon publicado pelo The International New York Times para exibir durante um protesto de rua: o desenho mostrava Erdogan a cortar fatias de um espeto de carne que representava a “democracia”. Foi interrogado pela polícia, sob suspeita de insulto à bandeira nacional, e acusado: se o caso chegar a julgamento, enfrenta uma pena de três anos de prisão.

Rachael Jolley, a directora da revista Index on Censorship, explica porque “os ditadores e os déspotas odeiam cartoonistas políticos”. “O poder de uma piada não deve ser subestimado: o impacto da pena sarcástica de um cartoonista é muito mais poderoso do que o de um título e um texto no jornal. A arte, o humor e a mensagem política de um cartoon não se esquecem facilmente”. As caricaturas políticas podem funcionar como um “antídoto” contra o medo, ou como um “escudo” contra o abuso de poder, mobilizando a oposição e a opinião pública. Também servem como uma espécie de “espelho” que reflecte e expõe uma parte da realidade que alguém preferia esconder – “É por isso que os regimes autoritários não gostam”, conclui.

Como frisa Patricia Bargh, da Cartoonists’ Rights Network International, “os cartoonistas são muitas vezes o último bastião da liberdade de expressão em regimes repressivos, e o seu trabalho é respeitado e valorizado, às vezes até mais do que o dos jornalistas, pela sua coragem e capacidade de dizer o que os outros não podem ou de, através da sátira, revelar algo que de outra forma jamais veria a luz do dia”.

Recep Erdogan governou a Turquia entre 2003 e 2014. Impedido de cumprir um quarto mandato consecutivo, candidatou-se à presidência e foi eleito à primeira volta em Agosto, naquele que foi o primeiro escrutínio directo e universal para a chefia do Estado – um cargo cerimonial e de representação, mas cujas competências e poderes já prometeu reforçar. Uma primeira inovação será posta em prática dentro de duas semanas, quando Erdogan presidir, pela primeira vez, à reunião do conselho de ministros no palácio presidencial com mais de mil quartos que mandou construir em Ancara.
 

   

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