Católicos de Canelas insistem na "guerra santa" contra novo pároco

População continua a recusar o pároco nomeado pelo bispo do Porto, a quem acusa de ligações políticas com gente da terra, e reclama o regresso do padre Roberto, que, por enquanto, não assumiu nenhum novo posto.

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Apesar da constestação, o padre Albino continua a celebrar a missa em Canelas Fernando Veludo/nFactos

Mistura intrigas e cartas anónimas, vigílias, contestação e insultos, padres e políticos, chantagens e ameaças, suspeitas de pedofilia e acusações de corrupção. E um enredo que, por isso tudo, parece feito à medida de um blockbuster no cinema. Mas anda muito longe da ficção aquilo que se está a passar na freguesia de Canelas, em Vila Nova de Gaia. A confusão instalada é real, intrincada, e, pelo menos para já, tem final desconhecido.

Há quem aposte numa seita religiosa autónoma, há quem acredite que o assunto vai esmorecer e que a divisão exacerbada que se manifesta na pequena freguesia diminuirá com o tempo. Para já, a única garantia é que todos os domingos e dias santos haverá manifestações em Canelas contra o pároco que para ali foi indicado pela diocese, o padre Albino, e de reivindicação do regresso do anterior pároco, Roberto Sousa.

Olhar para a toponímia de Canelas até poderá ajudar a compreender como se chegou a esta divisão. Não faltam ruas com nomes de padres, e a ligação de gente da terra a movimentos como a Juventude Operária Católica é propagandeada e assumida. O assunto saltou para os jornais desde que, na primeira missa que celebrou em Canelas, no dia 9 de Novembro, o padre Albino foi recebido com insultos e impropérios, e precisou de sair com escolta policial. Quase dois meses volvidos, ainda há população a avolumar-se fora da igreja, enquanto o padre tenta celebrar missas lá dentro. Já não há tantos insultos (que estavam quase sempre relacionados com a imagem física do padre, de barba e cabelo comprido), nem há ameaças assumidas. Mas é inegável a pressão psicológica da população amotinada cá fora, a rezar terços ou outras ladainhas, a quem quer assistir aos serviços religiosos lá dentro.

Depois de no dia 8 de Dezembro os paroquianos terem trazido uma imagem da capela de Nosso Senhor do Calvário, no lugar de Curro, para fora da Igreja paroquial e terem feito uma “cerimónia alternativa” enquanto decorria a missa no interior da igreja, o assunto chegou ao Conselho Municipal de Segurança. A autarquia tem de começar a tomar conhecimento prévio de todos os ajuntamentos da população que possam ser considerados uma manifestação em termos legais, para alertar as forças de segurança. E a população começou a fazê-lo: este domingo, ao fim do dia, por exemplo, a autarquia foi informada da intenção de serem realizadas duas novenas (entre as 18h e as 21h) junto à igreja paroquial de Canelas. E a GNR já foi alertada.

O enredo desta história não é difícil de simplificar: o padre Roberto começou por concordar com a estátua ao padre Gabriel que, confirmou o PÚBLICO, já está feita (é da autoria da escultora Margarida Sousa), já estava paga por um ex-canelense que quis homenagear o padre que lhe suportou os estudos no Colégio dos Carvalhos e que até já tinha autorização das autoridades municipais (câmara e junta de freguesia) para a localização: fora do adro da igreja, no espaço público entre o coreto e a porta de entrada do cemitério. A homenagem tinha tudo para correr bem, até porque a figura do padre Gabriel é bem aceite na freguesia e já é dele o nome de um dos principais largos da freguesia. O mesmo, junto à igreja, que agora tem sido palco de contestações todos os domingos. 

A estátua já estaria paga, mas a Associação para Homenagem ao padre Gabriel do Rosário Alves (conhecida como “Comissão da Estátua” e integrada por dez elementos, entre eles a escultora Margarida Sousa e Francisco Barbosa da Costa, durante 20 anos vereador da câmara de Gaia e três vezes deputado da Assembleia da República pelo PSD) quis promover um peditório pela freguesia, para que toda a gente se pudesse associar a esta homenagem. O padre Roberto não gostou que alguns dos seus paroquianos começassem o peditório de porta em porta para este efeito. E disse-o numa homilia. 

Foi, aliás, também numa homilia que, em Junho, o padre Roberto denunciou que teria sido ameaçado que o tirariam da paróquia caso não colaborasse com a Comissão da Estátua. A sugestão de transferência da paróquia foi confirmada pela diocese, tendo o Bispo do Porto assinado um comunicado onde recorda o convite para que o padre Roberto assumisse funções em Lousada ou em Marco de Canaveses, no âmbito de um esquema de rotatividade que abrangeu mais 40 padres. Começaram as acusações de corrupção e de ligações entre o poder político e a Igreja. Foi também numa homilia, relataram duas testemunhas ao PÚBLICO, que Roberto avisou que não voltaria a fazer “nenhum serviço religioso ao Barbosa da Costa ou à sua escumalha”. 

Sucederam-se vigílias e manifestações, audiências privadas e comunicados públicos. No final de Julho, o salão paroquial da freguesia encheu-se com centenas de pessoas para ouvir os membros do movimento “Uma Comunidade Reage” - a intenção era ouvir a população, e pedir-lhe apoio para a posição que o padre Roberto havia tomado junto da diocese: cessar funções em Canelas a partir de 8 de Setembro, a menos que o bispo do Porto pedisse desculpas aos paroquianos (por ter tentado tirar de lá o padre), demitisse o vigário-geral (por ter sido, alegadamente, quem “ameaçou” o padre Roberto com a saída da paróquia) e desautorizasse o seu bispo auxiliar (por ter sido quem a decretou). Nem o bispo pediu desculpas, nem o padre Roberto saiu. Houve alguma “paz” durante dois meses. Até que a 3 de Novembro o afastamento de Roberto Sousa à frente dos destinos da paróquia de Canelas se oficializou. E a “guerra santa” instalou-se de vez.

Se no final do Verão era fácil simpatizar com a luta dos que pediam o regresso do padre Roberto - e foram muitos os relatos dos paroquianos que reconheciam ter-se reconciliado com a prática da fé durante o seu consulado, e dos que sublinhavam que a comunidade paroquial estava bem maior e mais activa, sobretudo com a presença de mais jovens - volvidos estes meses, e tornadas públicas as denúncias e “chantagens” assumidas pelo padre Roberto, esse apoio é menos generalizado na freguesia, constatou o PÚBLICO junto de várias fontes.

Foi num comunicado assinado pelo Bispo do Porto, D. António Francisco dos Santos, que se soube da ameaça de denúncia que o padre Roberto tinha feito ao bispo. Na carta onde, em Setembro, lhe comunicou que “tinha decidido permanecer em Canelas”, pelo que não aceitava a transferencia de paróquia nem a capelania hospitalar que também lhe foi oferecida. E ameaçava revelar “um caso grave de comportamento de um sacerdote, acontecido em 2003”. Nesse comunicado, o bispo do Porto diz que não conhece o padre em causa, que não pertence à Diocese do Porto. Mas, “dada a gravidade do caso denunciado”, D. António reconhece ter remetido o caso às autoridades.

É o Correio da Manhã que, duas semanas depois, revela quem é o padre em causa - Abel Maia, pároco de Fafe - e qual é a suspeita: abuso sexual de menores. A arquidiocese de Braga decidiu suspendê-lo "por prudência pastoral”. Alguns canelenses ouvidos pelo PÚBLICO, que se afastaram do movimento de apoio ao padre Roberto, e que pedem para não ser identificados, questionam: um caso tão grave, só é revelado agora? O padre Roberto não fala aos jornalistas, mas Miguel Rangel, líder do movimento “Uma Comunidade Reage” garante: “Obviamente, o assunto foi denunciado em 2003, logo na comunidade dos Dehonianos onde ambos [Roberto Sousa e Abel Maia] se conheceram”.

No início desta semana, e por altura da morte de um membro do movimento “Uma Comunidade Reage”, a família recusou-se a receber os serviços religiosos do padre Albino. E há testemunhos de que no caixão do defunto estava uma imagem do padre Roberto. O rumor de que esta comunidade contestatária quer obter um espaço religioso alternativo não é liminarmente recusada por Miguel Rangel: “Há um padre sem paróquia atribuída e há uma comunidade paroquial que o quer de volta”.

Depois de ter levado o caso de Canelas a uma audiência com o Núncio Apostólico, e de o representante do Vaticano em Portugal lhes ter pedido para encontrar com o bispo António Francisco dos Santos, "com realismo e bom senso", uma solução "permanente, aceitável e viável" para Canelas, o movimento continua a pedir a reposição do Padre Roberto. “Insiste-se que essa é a solução mais justa, respeitadora da verdade e pastoralmente acertada “, escreveram num comunicado. A não ser possível a sua permanência, pedem que o padre Roberto não seja enviado para um contexto rural, mas antes “para outra paróquia semi-urbana de Vila Nova de Gaia”. Mas continuam a exigir o afastamento do padre Albino de Canelas. “Este sacerdote não preenche um perfil agregador da comunidade pelas alianças seletivas que teceu com os membros da comissão da estátua (…) e pelo seguidismo acrítico de certos membros da cúria diocesana”.

Chegados ao Natal, é caso para dizer que a procissão ainda vai no adro, e a paz anda longe de se instalar por Canelas.

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