Este regime nunca morre!

A prisão de Sócrates inaugura de forma drástica e perversa a transfiguração do perfil ideal de um líder e reforça a legitimidade de Passos Coelho.

Muito tem sido escrito a propósito de uma possível crise de regime. A ideia não reúne consenso e parece constituir antes um sentimento partilhado por alguns – ou que alguns quererão ver generalizado.

Rui Tavares e Vasco Pulido Valente denunciam, de forma diferente, o exagero deste prenúncio de morte alertando para a inexistência de sinais de desconfiança entre os poderes soberanos e para a forma como induz um nevoeiro propício a vários sebastianismos. Apesar das diferenças entre aqueles que afirmam que a prisão do líder político mais votado da história da democracia portuguesa mina por completo a confiança da população na capacidade do regime em produzir lideranças competentes e aqueles que argumentam que agora é que o regime pode "começar a funcionar", há, de facto, a convicção partilhada de que a sobrevivência do regime é sobretudo uma questão interna. E é verdade que, idealmente, o contratualismo próprio da democracia promove um regime político que responsabiliza a vontade popular pelo curso da História e reforça o papel daquela na alteração e transformação deste.

Contudo, a realidade dos regimes democráticos contemporâneos, até por comparação com regimes liberais de outrora, parece demonstrar que a globalização veio adensar a legitimação pós-popular ou meta-democrática da própria democracia. Por um lado, reforçou o papel do reconhecimento externo da soberania dos Estados, da qual a democracia, mesmo que meramente formal, se tornou um qualificativo incontornável. Por outro lado, e por portas travessas, a democracia é também uma condição funcional de um sistema económico-financeiro capitalista. O início do "fim da história" de Fukuyama trouxe consigo, para já, uma globalização da democracia que não implica de todo uma democratização da globalização. Assim, a uma sociedade de estados que tem vindo a reforçar a democracia e o rule of law como critério de reconhecimento externo da Soberania, sobrepõe-se um sistema económico internacional que exerce sobre a esfera doméstica do Estado um tipo de pressão que obriga os governos a serem "responsáveis" e a manterem os regimes políticos "funcionais" do ponto de vista da performance do sistema capitalista global.

Se tomarmos em conta as condicionantes não-democráticas do processo de globalização da democracia – e sobretudo a co-dependência ontológica entre a federalização europeia e o défice democrático das suas instituições rapidamente podemos concluir que a transformação da democracia num critério de soberania estatal só aparentemente reforçou o poder dos povos para autodeterminar o seu destino político. Os momentos de convulsão e tumulto que marcaram a Europa do Sul após a crise revelam precisamente isso: a irrelevância histórica do factor endógeno. A inconsequência dos movimentos de protesto que se estenderam um pouco por todo o Sul da Europa mostra que o fim de um regime democrático integrado num espaço político mais vasto, economicamente interdependente – mesmo que de forma profundamente assimétrica –, é impensável, a não ser que parta de dinâmicas sistémicas transnacionais. Por cá, o regime não está, portanto, tão dependente de nós como gostamos de pensar que esteve o seu arranque. O que significa que a democracia, como condição de pacificação da sociedade internacional de Estados e como instrumento funcional do próprio sistema económico-financeiro internacional, pode muito bem sobreviver sem um demos.

De resto, como em Itália, o regime pode vir a sofrer alterações através da mudança do sistema político e da reconfiguração do espectro ideológico-partidário. Mas nesse caso não estamos na presença do fim de um regime mas sim da sua renovação ou modernização. E não é líquido que ele possa contribuir para o reforço da autonomia da esfera privada face à esfera pública, ou seja, para um maior escrutínio das relações entre o mundo dos negócios e os partidos aliás, no caso italiano, essa promiscuidade aumentou desde os anos 80, não diminuiu. Para aqueles que vêem no funcionamento do Estado ou mesmo na Constituição o grande obstáculo ao desenvolvimento, e para quem só a mudança de regime poderia trazer uma verdadeira mudança, a mera reorganização das alternativas ideológicas vocacionadas para a governação parece não ser suficiente hoje para conduzir esse tipo de transformação pelo menos não o foi noutros países. A morte da terceira república é, portanto, improvável do ponto de vista histórico. Não havendo, de facto, sinais de uma situação "pré-revolucionária" nem tão-pouco de uma hipotética implosão institucional do regime ao estilo da primeira república, só nos resta crer que o regime perdurará, até por causa do efeito regenerativo da expiação de pecados colectivos que representou a detenção do ex-primeiro-ministro.

A prisão de Sócrates inaugura de forma drástica e perversa a transfiguração do perfil ideal de um líder e reforça a legitimidade de Passos Coelho: um líder "com carisma" passará agora a ser sinónimo de um líder austero que defende a salvação do Sul de si próprio. A violência deste subconsciente civilizador revela aqui toda a sua força simbólica, mobilizadora de um sentido de purificação sem precedentes. Ao mesmo tempo, as políticas de austeridade transformaram a impotência numa virtude e a campanha eleitoral que se avizinha vai, sem dúvida, polarizar o espectro "austeridade/despesismo", sobrepondo-o ao espectro "transparência/corrupção". Paradoxalmente, a intensificação do debate eleitoral dar-se-á em paralelo com a sua despolitização aparente, e a fulanização do confronto interpartidário, de consequências imprevisíveis, pode dar origem a um apelo cada vez mais místico à autoridade teológica da justiça. É certo que a corrupção é um sinal de decadência de qualquer regime, como a sua denúncia descontrolada tende para uma judicialização que abre a porta ao fim da separação de poderes e assim convida a ditadura. Mas a intervenção da "mão invisível" da Comissão Europeia, do BCE e de outras entidades externas, bem como a densidade da economia e da política europeia, tornam o fim do regime impossível precisamente porque, como numa ditadura, alienam a democracia da própria legitimidade popular. Quando a democracia deixa de ser uma possibilidade histórica mais ou menos realizável de acordo com a vontade colectiva, ela torna-se num diktat externo irresistível e imunizado contra qualquer alternativa até porque a caricatura à sua imagem, isto é, como ditadura. Um regime assim nunca morre.

Lecturer/professor auxiliar, Universidade da Beira Interior – UBI, PhD, Dept. of International Politics, Aberystwyth University

Sugerir correcção
Ler 5 comentários