O machismo pode matar

A violência de género é uma manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre homens e mulheres que tem conduzido à discriminação destas, impedindo-as de ser livres.

Já morreram este ano 40 mulheres assassinadas pelos seus (ex) maridos ou companheiros, ou seja, em cada semana que passa o país é confrontado com o assassinato brutal de mais uma mulher.

É esta uma das mais incríveis e persistentes formas de violência de género, que infelizmente teima em resistir, porque se mantém a razão da sua existência, que é a histórica desigualdade de género e a menorização do sexo feminino.

A violência de género é uma manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre homens e mulheres que tem conduzido à discriminação destas, impedindo-as de ser livres. É um mecanismo crucial que força as mulheres a uma posição de subordinação, constituindo uma das mais graves violações dos direitos humanos. É uma estratégia de controlo e domínio que exacerba as problemáticas masculinidades de não aceitação da autonomia, respeito e vontade da outra pessoa.

Enquanto uma sociedade não eliminar a violência contra as mulheres, verá sempre a paz e a democracia ameaçadas! Uma sociedade não pode ser justa, enquanto houver pessoas que, por medo ou por precariedade, motivadas pela crise ou por outra qualquer razão, tiverem de silenciar a violência que as impede de ser livres.

A casa é dos espaços mais violentos das sociedades modernas, como diz Anthony Giddens, onde o lugar do afeto é simultaneamente o lugar da violência e onde as relações de amor se transformam em relações tóxicas, de tortura, que podem levar à morte.

O abandono do silenciamento e a consequente visibilidade da violência nessas catedrais de tortura é indiscutivelmente revelador de uma certa consciência moral a que a civilização está ligada. Mas a persistência e o aumento da violência no espaço doméstico é também revelador da profunda incapacidade de se efetuarem ruturas com modelos conjugais e valores que, como diz J. Kellerhals, exacerbam uma enorme contradição onde o lugar da realização é simultaneamente o espaço do constrangimento.

Mas a violência de género não é uma inevitabilidade. Se foi socialmente construída, através do enraizamento histórico de uma cultura de desrespeito pelos direitos das mulheres, de uso da força e do poder como forma de as controlar e dominar, pode ser socialmente combatida, pelo seu antídoto um novo modelo civilizacional que promova a igualdade, a cidadania e novas relações sociais de género.

Num momento em que a Convenção de Istambul (Convenção do Conselho da Europa para a prevenção e combate à violência contra as mulheres e a violência doméstica) entra em vigor e que vêm a lume inúmeras notícias de assassinatos de mulheres e do aumento das denúncias feitas às autoridades (no primeiro semestre do ano as forças de segurança receberam mais 2,3% de queixas, ou seja, mais 291 denúncias do que em igual período do ano passado, em 2013 registaram-se 27.318 queixas), urge perguntar o que falta fazer depois de tudo o que já foi feito para combater este flagelo social.

Em 2009, com a aprovação da Lei nº 112, que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas, foram adotados novos meios para tornar eficaz a medida de coação de afastamento do agressor, nomeadamente a “vigilância eletrónica para agressores” e a “teleassistência para vítimas”, de modo a reforçar a proteção da vítima em situação de risco. Foi igualmente definido o caráter urgente para este tipo de criminalidade violenta, o que tem levado a que, em circunstâncias muito específicas e excecionais, se tenha já aplicado a mais pesada medida de coação – prisão preventiva.

Estou convencida que, pelo conhecimento e pelos estudos que tenho realizado sobre a matéria, se não fosse esta intervenção urgente em situação de risco (vigilância eletrónica e teleassistência), esta criminalidade seria maior hoje do que é. Isto não nos deve, contudo, deixar descansados, uma vez que, apesar de termos travado o aumento destas agressões, ainda não as conseguimos fazer diminuir.

É preciso um compromisso político para que novas medidas de emergência, como são recomendadas na Convenção de Istambul, possam ser adotadas. A título ilustrativo direi apenas que a lei de proteção contra a violência doméstica na Áustria concede à polícia o direito de despejar o perpetrador de violência do lar comum por um período de dez dias sem necessidade do consentimento prévio da vítima. No prazo de 24 horas, a polícia deve enviar um relatório a um centro de intervenção, que ofereça à vítima um aconselho abrangente na matéria.

Em Portugal tal medida pecaria por inconstitucionalidade; contudo, em 2009, foi introduzida na lei a possibilidade de, nestas circunstâncias, se poder efetuar a detenção do agressor por um período de 48h sem ser em situação de flagrante delito, até o detido ser apresentado a audiência de julgamento sob a forma sumária ou a primeiro interrogatório judicial para eventual aplicação de medida de coação. A implementação desta medida inovadora carece agora de aprofundamento, dado ser bastante rara a sua aplicação.

O Partido Socialista, desde sempre pioneiro na introdução destas medidas no nosso ordenamento jurídico, já fez entrar na Assembleia da República um projeto que permitirá reforçar a medida de afastamento do agressor a mais urgente e de difícil execução para uma prevenção efetiva da mais extrema forma de violência conjugal, que é o homicídio conjugal – com obrigatoriedade de comunicação à Segurança Social, concomitante com a regulação provisória da pensão de alimentos devidos aos menores, e das responsabilidades parentais, que permitirão um reforço de autonomia da vítima numa situação em ela ainda não se conseguiu libertar da agressão. Com este projeto, o Partido Socialista promoverá uma melhor articulação entre os tribunais cíveis e de família e criminais, melhor agilização com as forças de segurança, sensibilização dos magistrados do Ministério Público e judiciais, e dará mais um passo significativo no cumprimento da Convenção de Istambul.

Tal constituirá seguramente um novo contributo para a prevenção da violência doméstica e do homicídio conjugal, prevenindo de igual modo a dupla vitimização das mulheres agredidas, quando são forçadas a refugiarem-se em casas de abrigo, como os seus filhos, para não morrerem nas suas próprias casas.

Investigadora em violência de género e deputada do PS

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