O que é ser mulher num sítio onde tem de se ser mulher?

A partir de quinta-feira, Cântico toma conta do Animatógrafo do Rossio, em Lisboa, invertendo o sentido do desejo. Dentro da cabine, o espectador será convidado não tanto a desejar quanto a ser confrontado com o desejo de quatro mulheres.

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Quatro mulheres no lugar onde habitualmente há apenas uma. Quatro mulheres a fazerem do verbo um desejo carnal no lugar onde habitualmente apenas uma o costuma encarnar. Quatro mulheres a desejarem onde habitualmente apenas uma é desejada. As vozes das quatro enredando-se num sussurro que descreve o amado e, às tantas, as ladainhas apaixonadas cruzam-se, sobrepõem-se e misturam-se descrevendo “a sua cabeça como o ouro mais apurado”, “os seus olhos como os das pombas junto às correntes de águas”, “as suas faces como um canteiro de bálsamo”, “os seus lábios como lírios gotejando mirra”, “as suas mãos como anéis de ouro engastados de berilo”, “o seu ventre como alvo marfim”, “as suas pernas como colunas de mármore” e “a sua boca muitíssimo suave”. A descrição, a quatro vozes, torna-se embriagante, como se no meio dos sussurros as próprias palavras induzissem uma vertigem e prendessem quem ouve numa suprema demonstração de erotização da oralidade.

O texto, embora possa não o parecer em toda a sua lubricidade, pertence ao Cântico dos Cânticos, atribuído a Salomão e incluído no Velho Testamento. E foi identificado como o motivo perfeito para Ricardo Boléo e Cátia Terrinca, fundadores do UmColectivo, habitarem entre 25 e 30 deste mês o peep-show do Animatógrafo do Rossio, em Lisboa. Da parte de Boléo havia a vontade de explorar o mecanismo do peep show isolando o espectador; do lado de Terrinca veio a escolha do texto, caído à sua frente numa mudança de casa. “Para mim fazia muito sentido neste espaço pela subversão”, defende a actriz. “Por ser a mulher que deseja, por ser um gesto marginal perante o poder. Na altura, o poder religioso." Agora, é o espaço do peep show que simboliza a marginalidade diante do julgamento social. A conjugação dos dois seria determinante, mas a ideia de encenar um texto com forte sugestão sexual viria, inadvertidamente, do espectáculo que, meses antes, levaram à cena nos Primeiros Sintomas, baseado em escritos de Fernando Pessoa. “Quando nos deram o texto que Pessoa escrevera em guardanapos, aquilo tinha seis páginas e alguns lapsos de informação”, lembra o encenador. Dessas seis páginas de um texto que se lia em dez minutos, nasceu Inércia, uma peça que durava quase uma hora, devido às “suspensões de pensamento e de corpo” com que preencheram os espaços. “Isso tornou a cena muito erótica”, reconhece Boléo. “Mas não foi uma coisa premeditada.”

Se da primeira vez o erotismo foi acidental, agora é precisamente esse o ponto de partida que quiseram explorar. E explorá-lo a partir do interior, das entranhas de um espaço em que a sugestão sexual é dada por adquirida. Esse é outro desafio, na verdade, o de recentrar um pouco aquilo de que se fala ou, pelo menos, de tentar esticar estes conceitos – algo a desenvolver, paralelamente, no ciclo de debates Janela Marginal. “Para mim”, diz Cátia Terrinca, “pode ser interessante o erotismo estar mais relacionado com um lugar de construção íntimo e da imaginação de cada um, mais do que com algo sexual.” O papel do espectador de uma peça erótica deve, por isso, permitir a idealização individual a partir das referências pessoais. “É esse tipo de erotismo que está em causa”, insiste Terrinca. “Não é só o erotismo do corpo e da sexualidade. É o erotismo da intimidade de cada um.”

Quatro mulheres num espaço que se assemelha a uma arena, portanto, num combate estabelecido: assaltar a intimidade de quem assiste, interpelar directamente espectadores e, de alguma maneira, devolver a curiosidade daqueles que poderão, a troco de uma moeda, como num vulgar peep show, entrar numa cabine e espreitar para o seu interior. Lá dentro estarão mulheres não tanto a expor-se quanto a invadir quem assiste, tentando destronar a passividade. Mas também num estado bendito, confessa Cátia Terrinca. “Sinto-me abençoada por ter alguém a olhar para mim durante uma hora e a ouvir-me. Não tenho esse privilégio na minha vida. Com quantas pessoas namorei e vivi que não me deram isso?”

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Tanto Ricardo Boléo como Cátia Terrinca falam dessa mera presença de outra pessoa como uma questão erótica por si só, mas que convoca igualmente a ideia de teatro, de lugar a partir do qual se tenta decifrar o mundo. Acresce que o acesso facilitado ao espaço – “tem sido mais fácil do que trabalhar com teatros”, garantem – e a pesquisa de meses permitiu ir estabelecendo ligações nervosas entre a peça que apresentarão às 23h, no final de cada 12 horas de apresentações da regular actividade do Animatógrafo. Nesse contacto próximo, Cátia encontrou “um espírito de camaradagem feminina que é muito raro”. “Transportámos isso para a dramaturgia deste espectáculo, em que somos mulheres que se ajudam.” Em busca de semelhanças entre as funções do teatro e do peep show – “são ambos um trabalho de exposição, sobre o corpo, sobre o eu, e têm algo de manifesto” –, a fronteira definitiva havia de estabelecer-se na visão definitiva sobre aquilo que entendem passar-se no peep show. “Nós vemos o que fazemos como um espectáculo, mas para elas aquilo é um ofício. O ofício para mim é o ensaio. Elas não ensaiam”, compara a actriz.

Aos poucos, foram também percebendo que queriam aproximar-se da ferramenta de trabalho das performers do Animatógrafo: a representação do feminino. Até porque Boléo e Terrinca queriam habitar o espaço sem ironia, e não como simples cenário. “Há dias perguntavam-nos se a loja iria ter os DVD e os vibradores expostos”, espanta-se o encenador. “Claro que vai ter, vai funcionar normalmente. Não queremos chegar lá e transformar aquilo numa outra coisa.” Do lado das actrizes, entrar na arena implica reflectir sobre o que significa ser mulher. Daí que Cátia ande a repetir-se uma pergunta fundamental: “o que é ser mulher num sítio onde tenho de ser mulher?” Dentro do peep show, diz, “é uma obrigatoriedade”. Não lhe basta andar, respirar, ir a uma casa de banho com sinaléctica distintiva, ser tratada por um nome inequívoco, conhecer os seus ciclos biológicos, identificar-se num formulário ao fazer um X à frente da letra F. Ali, fechadas entre quatro paredes, observadas por 32 pares de olhos, as quatro terão de ser uma mulher que, de fora, seja vista como mulher.

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