O poder redentor das histórias

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Desh Richard Haughton

Saímos de Desh - o primeiro solo de dança contemporânea do coreógrafo britânico de ascendência bengalesa Akram Khan (Londres, 1974) – com a convicção de termos visto, para além dele, uma multidão de personagens em cena.

Magistralmente interpretado, a partir de textos da poetisa Karthika Nair, trechos dançados e, sobretudo, com a assombrosa concepção visual de Tim Yip, Khan traz-nos uma deslumbrante meditação poética sobre os conflitos interiores de um emigrante da segunda geração: a ambiguidade da pertença, a mitologia das origens, a nostalgia da infância e das histórias fantásticas dos antepassados, e os balanços da idade adulta.

Discretas subidas e descidas de uma tela translúcida (sobre ela se projectarão imagens animadas), criam dimensões de espaço e tempos narrativos tão vívidos, que configuramos com nitidez pessoas, memórias e lugares ausentes de que Khan fala. 

Sob sonidos de tráfego, buzinadelas e vozearias cacofónicas, discernimos, nos movimentos da personagem, o transeunte no frenesi das sobrepovoadas urbes asiáticas.   

Inesquecível, a face que desenha a marcador na pele do próprio crânio, a convocar a figura do pai, o pequeno cozinheiro bengalês emigrante. Ao dialogar com vozes masculinas, femininas ou infantis em off,  em bengali ou num inglês com sotaque, Khan reconstrói meandros emotivos das relações familiares, geracionais e da ambivalência cultural.

Numa cena, agacha-se para ajudar uma menina invisível a calçar-se, e o atacador, agigantado na projecção animada, forma uma corda que o levará a outras geografias: segue num barquinho ao longo de um caudaloso curso de água ladeado de luxuriante floresta tropical; há bandos aves a esvoaçar, e o cair da noite estrelada. Cruza-se com um elefante, enfrenta um crocodilo. Uma criança a correr na selva, acossada por um tanque de guerra, ou os contornos de uma turba em protesto, aludem à guerra de libertação com o Paquistão (1971). Abate-se a chuva torrencial das monções, e pensamos num país que vive na iminência da catástrofe, o primeiro que submergirá ao aquecimento global.

Khan recolhe com um simples gesto de mão este universo imaginado e regressamos ao palco. Liga a um call centre e reclama a avaria de seu gadjet; em linha, uma voz infantil com acento asiático. O seu desalento lembra-nos das multinacionais deslocalizadas no 3º mundo, do trabalho infantil, e da população subnutrida em insólita convivência com a alta tecnologia.

Num belíssimo contraluz, Khan dança um trecho inspirado no kathak que aprendeu em criança, e entendemos nesta incorporação física o essencial da sua conexão à Ásia.

As distorções visuais e da proporção de objectos, a dar-nos a visão infantil ou adulta destas vivências, pedem meças ao mundo surreal de Alice ou às geniais prestidigitações cénicas Robert Wilson.

Desh (“pátria”, em bengalês) é a mais bem-sucedida peça de Khan, e do temário autobiográfico da sua obra. No início, emerge da escuridão, alumiado por um candeeiro, qual Diógenes contemporâneo em busca da identidade estilhaçada. O que nos vai contar é, afinal, sobre amor e sobrevivência, a urgência e fragilidade dos afectos, partilhados por milhões de emigrados. E sobre o poder redentor das histórias.

Neste périplo íntimo, épico e encantatório, o alusivo prevalece sobre o explícito. Nada é gratuito nesta produção de luxo, algo refém, porventura, da sua própria exuberância. Mas a energia comunicativa faz o pleno, e figurará, decerto, entre o melhor que vimos em 2014.

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