Nova Iorque nos 50 anos do planeta Meredith Monk

Diz que a música que faz é um folk de outro planeta. Compositora, cantora, coreógrafa, bailarina, artista plástica, realizadora, Meredith Monk cruza todas as artes desafiando convenções e modas. Foi inspiração para Merce Cunningham, Godard ou Björk. Tem 72 anos e não quer parar.

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Meredith Monk Julieta Cevantes
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Meredith Monk and Vocal Ensemble Julieta Cevantes
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Julieta Cevantes

Podemos estar num tempo antes de tudo ou depois de tudo. Uma humanidade em construção ou perdida, em busca de novas formas de comunicar e colocar-se num planeta onde é preciso inventar movimentos, sons, modos de estar. Meredith Monk, 72 anos, apresenta-se em palco numa celebração da natureza que é quase uma prece.

Chove na cidade, mas o interior do Harvey Theatre, uma das salas do BAM, a Brooklyn Academy of Music, encheu para ver a última apresentação em público de uma peça escolhida para celebrar os 50 anos de actividade da performer que rompeu com as fronteiras entre música, dança, teatro, canto, cinema, artes plásticas. 

On Behalf of Nature, integrada no Next Wave Festival, onde este Outono já actuaram nomes como Laure Anderson ou Philipp Glass, é o mais recente testemunho dessa capacidade de Monk de estar na moda estando fora dela, como se classificou recentemente numa entrevista ao New York Times para tentar explicar a sua longevidade criativa num universo onde são poucos os sobreviventes de uma cultura que nasceu na baixa de Nova Iorque e influenciou o mundo das artes. 

Num palco vazio, despejado de qualquer elemento que não as luzes, oito figuras, vozes e corpos em movimento, experimentam uma linguagem que tenta replicar a natureza. Não há propriamente um discurso sobre ela, mas a pretensão de deixar passar a natureza através dos elementos que ela fornece. Esse é o ponto de partida para este trabalho com o Vocal Ensemble, uma obra mais vez difícil de classificar. É teatro, mas é música. É música mas é dança. E feito de tantos silêncios quanto de paragens.

Num dos momentos do espectáculo, Meredith Monk fica a sós com a sala cheia. E o que chamar ao que acontece? Não há uma conversa, mas a tentativa de partilha de uma linguagem. Público e artista num planeta por explorar e um e outra procuram o entender-se esse espaço. A música, ora dissonante ora melódica, ora só uma possibilidade, encena o ponto de comunhão. E ou segue o corpo, ou é o corpo que vai indo numa cadência também ela pré-humana. Há alguém à procura do espaço onde se concretizar.

Apresentada pela primeira vez na UCLA, em Janeiro de 2013, On Behalf of Nature testa, uma vez mais, os limites da criação artística. Nada estranho para quem vem acompanhando o trabalho de uma mulher que a crítica é unânime em considerar pioneira: das capacidades da voz humana ou do tal cruzamento de disciplinas até elas se transformarem num híbrido que muitos se interrogam se é capaz de viver para lá da vida de Meredith Monk de tal forma tudo lhe sai mais ou menos de improviso, com poucas anotações e dependente da sua própria interpretação. 

Esta peça não é excepção. Ao contrário. Talvez seja mesmo um dos exemplos em que essa colagem ao corpo e à vida actual de Monk, muito contaminada pela meditação budista e por preocupações ecológicas, seja mais evidente. Meredith Monk fala de On Behalf of Nature como um “hino à compaixão” e apresenta-a na altura precisa em que do lado de fora do BAM, manifestantes protestam contra a decisão do júri do tribunal de Staten Island de não indiciar um polícia pela morte de Eric Garner, ocorrida em Julho deste ano. Ela não se pronunciou sobre o assunto. Nem sobre o que pode aparecer como o especial tema da performance, uma chamada de atenção para as alterações climáticas que estão a ameaçar a sobrevivência do planeta.

Como sempre, preferiu socorrer-se da arte para se posicionar num “mundo comandado pela política” e é através da arte que vai fazendo os seus manifestos. A escolha de uma peça como On Behalf of Nature para assinalar 50 anos de um trabalho de ruptura com convencionalismos pode ser lido como um incorformismo pessoal. Mas como sublinhou no livro de entrevistas com a crítica norte-americana Bonnie Marranca, Conversations with Meredith Monk, publicado este ano, nunca foi uma artista com uma agenda fora das artes. O livro, que também assinala a data, atravessa toda a vida e obra de Monk e, com On Behalf of Nature, é um dos pontos altos da uma celebração dos 50 anos de Monk enquanto artista centrada em Nova Iorque, e sobretudo no Carnegie Hall, onde tem uma residência artística, mas com actuações no BAM, Zankel Hall e Poisson Rouge. A série termina em Maio, em Holoyke, Massachussets e, On Behalf of Nature terá mais uma apresentação em São Francisco. 

 O que será de Monk depois dela? 
Inspirada pela filosofia budista e pela ideia do poeta Gary Snyder do artista enquanto porta-voz de entidades não humanas, a peça sugere, como explica a nota distribuída à imprensa, um universo onde o material, o espiritual e o humano coexistem numa harmonia interdependente. Como em todos os seu trabalhos, a proposta de Monk é a de encontrar um vocabulário que ultrapassa essa dimensão humana e conseguir nessa busca a unidade com um público que não deixa de a seguir e lhe reconhece um génio que já inspirou artistas como Merce Cunningham, Björk ou John Zorn.

Em On Behalf of Nature não faltaram as vezes em que o espectador pode sentir-se perdido no meio de um cenário onde são poucas as pistas para uma leitura proposta, ou seja, como se Monk ao apresentar-se minimal não apenas nos cenários (onde além dos poucos efeitos de luzes há uma breve projecção de imagens de insectos e da paisagem lunar), mas na música, nos movimentos e nos poucos vocábulos que se assemelham ou a sons de insectos ou a primitivas evocações, deixasse apenas espaço para a imaginação delimitada por esse lado de início, primitivo, quase sem recursos, onde tudo pretende estar em harmonia.

E, outra vez, perante este espectáculo, surge a pergunta recorrente, já aqui colocada, mas que todos repetem após 50 anos de obra: como interpretar Meredith Monk sem ela? Nas óperas, nas peças de teatro e dança, nos vocais? Existem gravações. A primeira é de 1971, ano do álbum Key, já revelador da voz encarada enquanto instrumento, mais do que um meio de dizer palavras apoiadas em notas musicais. Ela explora as suas nuances, levando-a aos extremos e tornando-a etérea.

“Não tem de ter palavras, pode ser feminina ou masculina, vegetal ou animal. Pode ser uma paisagem, personagens, texturas”, explica ainda numa entrevista dada este ano ao New York Times onde faz uma revisitação da sua carreira. Numa outra entrevista, em 1984, vinte anos depois de tudo ter começado para ela, tentou responder a esse “e depois?”, dizendo que a única razão para fazer o que faz não é pelos registos, pelo que pode ficar após a sua morte, mas pelo prazer da descoberta ao nível da existência quotidiana, e que a verdadeira questão a que deve tentar responder é: “o que queremos fazer aqui, na terra?”. Quanto ao que faz realmente, que música é a que lhe sai, declarou num vídeo à Q2 Spaces que faz “música folk de outro planeta”.  

Natural de Lima, no Peru, onde nasceu em Novembro de 1942, iniciou a carreira em 1964, ano em que se mudou para Manhattan depois de uma infância e juventude repartidas entre Queens e Stamford, no Cunnecticut. Estudou piano, aprendeu a ligação entre som e movimento corporal segundo o método Dalcroze Eurythmics, iniciado na década de vinte do século passado pelo músico suíço Emile Jacques-Dalcroze, e começou a desenvolver um território próprio na margem da composição e dança clássicas com uma certeza: ia trabalhar como queria, criando o seu próprio universo artístico. Nos anos sessenta e setenta, Nova Iorque era o lugar certo para se lançar nessa ambição pessoal. Além do tal legado clássico, trazia ainda uma formação folk que completou com o estudo de canto e dança no Sarah Lawrence College, na cidade de Yonkers, perto de Nova Iorque. 

Bastaram quatro anos na cidade, e alguns trabalhos enquanto dançarina, coreógrafa e intérprete, para formar a House, uma companhia dedicada a explorar a interdisciplinaridade artística. Dez anos depois surgiu outra das suas marcas o Meredith Monk & Vocal Ensemble onde irá explorar as texturas e limites da voz. No cinema, o primeiro trabalho com destaque enquanto realizadora foi Ellis Island (1981) e Book of Days (1988). Assinou bandas sonoras para Jean-Luc Godard e para os irmãos Cohen. Com um vasto repertório vocal, compôs óperas, peças de música de câmara. Trabalhou com a Orquestra Sinfónica de São Francisco, o Kronos Quartet ou a Sinfónica de Saint Louis. Acumula distinções nas várias áreas onde trabalha. Venceu o McArthur Genuis Award, foi por duas vezes bolseira da Fundação Guggenheim e tem 12 trabalhos gravados com a ECM. 

Em Fevereiro, Março e Maio de 2015 Meredith Monk volta aos palcos de Nova Iorque, no Carnegie Hall, onde é a artista residente em 2014-2015. A Orquestra de Saint Louis vai tocar Wave, a sua peça de 2010, e Jessye Norman e John Zorn estão entre os artistas convidados para homenagear aquela que justamente o Carnegie Hall chamou de “visionária”, para justificar a sua escolha de a ter como protagonista desta temporada. 

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