Patrick Modiano: uma criança da guerra, testemunha e prisioneiro do seu tempo

O 15.º francês a receber o Nobel, fez este domingo em Estocolmo o seu discurso de aceitação do prémio.

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Patrick Modiano Maja Suslin/Reuters

Testemunha e prisioneiro do seu tempo – foi assim que o novo Nobel da literatura, Patrick Modiano, definiu este domingo a condição do escritor. Em Estocolmo, no discurso que fez na cerimónia de aceitação do prémio da Academia Sueca, Modiano explicou: “Um romancista está marcado de forma indelével pela sua data de nascimento e pelo seu tempo, ainda que não tenha participado de forma directa em acções políticas, ainda que dê a impressão de ser um solitário, entrincheirado naquilo a que chamam a sua torre de marfim.”

A importância do passado histórico e do presente, Paris e a ocupação Nazi de França durante o III Reich – são temas constantes da obra de Modiano, que se descreveu como “uma criança da guerra, que deveu o seu nascimento à Paris da ocupação”. Um produto do século XX, filho de uma actriz flamenga e de um judeu de origem italiana, mas a olhar nostalgicamente para os narradores do século XIX, “aquele tempo que decorria de forma mais lenta do que o de hoje”, uma “lentidão essencial ao trabalho da escrita, porque permitia concentrar energia e atenção”.  

“Prisioneiro do seu tempo, um narrador está marcado pela percepção da época em que nasceu e em que vive”, disse Modiano. Esclarecendo o seu próprio lugar: “Pertenço a uma geração intermédia e tenho curiosidade de saber como as gerações que me sucedem, que nasceram com Internet, telemóveis, emails e Twitter, se expressam através da literatura neste mundo em que sempre estamos ligados e em que as redes sociais comprometem uma parte da intimidade e do segredo que, até há pouco tempo, era o nosso valor mais acarinhado, porque dá profundidade às pessoas e é um grande tema literário.”

Modiano não pareceu, porém, viver a contemporaneidade com qualquer pessimismo: “Estou convencido que os escritores do futuro assegurarão a qualidade como faz cada geração desde Homero.”

Homero, mas também Modigliani – no seu discurso o 15.º Nobel francês da literatura delineou a linhagem a que acredita pertencer, e não só feita de escritores: pintores e músicos, “que praticam uma arte superior à do romance”, disse.

Escolha inesperada, já que não integrava sequer o “top ten” dos autores que as casas de apostas davam como candidatos mais prováveis ao prémio deste ano, entre os quais o queniano Ngugi wa Thiong'o, o japonês Haruki Murakami e a bielorrussa Svetlana Aleksijevitj, Modiano é considerado por alguns críticos o mais importante escritor francês vivo. Nascido em Boulongne-Billancourt, nos arredores de Paris, em 1945, publicou o seu primeiro romance, La Place de l'Étoile, em 1968. Sem estudos universitários, dirá mais tarde que se tornou escritor porque não podia fazer mais nada.

Dez anos após esse livro de estreia, que foi bem acolhido pela crítica e lhe valeu alguns prémios menores, recebeu o prestigiado prémio Goncourt por "Rue des Boutiques Obscures" (1978), que foi também o seu primeiro livro editado em Portugal, pela Relógio D’Água, com o título "Na Rua das Lojas Escuras".

Modiano recebeu em 1972 o Grande Prémio de Romance da Academia Francesa com "Les Boulevards de Ceinture", e ao longo dos últimos anos tem sido galardoado, pelo conjunto da sua obra, com os mais importantes prémios literários franceses e europeus. “É um autor reconhecido internacionalmente, mas nunca foi um autor popular, que vendesse muito em lado nenhum”, disse ao PÚBLICO, no dia em que o prémio foi conhecido, Manuel Alberto Valente, que publicou vários títulos de Modiano em sucessivas editoras, da D. Quixote e da ASA à Porto Editora, onde saiu em 2011 o romance "Horizonte" ("L’Horizon", 2010).  

A avaliar pelas suas declarações de então, o próprio Modiano terá ficado absolutamente desconcertado com a sua nomeação e voltou a falar sobre isso em Estocolmo: “O anúncio pareceu-me irreal e quis saber porque havia sido escolhido. Acho que nunca senti tão intensamente quanto nesse dia o quão um escritor é cego face à sua obra e como os leitores, na verdade, sabem muito mais do que ele.”

Modiano falou também da relação de um escritor com a palavra: “Um escritor, ou, pelo menos, um novelista, tem muitas vezes relações difíceis com a palavra. E se recuperamos a distinção escolar entre escrita e oralidade, um romancista estará sempre mais dotado para o escrito. Tem o hábito de guardar o silêncio e, se quer entrar em determinado ambiente, funde-se com a multidão.”

No que terá sido mais um auto-retrato do que uma tentativa de generalização, Modiano, tentou ainda uma aproximação ao trabalho do romancista, essa “curiosa actividade solitária”: “Atravessam-se momentos de desespero ao escrever as primeiras páginas de um romance. Enfrenta-se cada dia a impressão de ter seguido o caminho errado.”

Superado o terror inicial da “página em branco do esquecimento”, diz Modiano, trata-se de “fazer ressurgir algumas palavras meio esborratadas, como icebergues perdidos à deriva no oceano”. E seguir em frente. Depois, a dada altura, “a tentação de voltar atrás e escolher outro caminho é grande. Mas não há que cair nessa tentação”: “Quando estamos prestes a terminar um livro parece que ele começa a respirar o ar da liberdade, como as crianças nas aulas em vésperas das férias de Verão.”    

Na quarta-feira, juntamente com os restantes laureados deste ano, Modiano receberá o seu prémio das mãos do rei da Suécia.

Texto corrigido às 10h48 de 9 de Dezembro, 2014

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