Concerning Violence: os condenados da terra não desapareceram

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Concerning Violence

Como filme de abertura oficial, mesmo que no terceiro dia do Porto/Post/Doc (sábado 6 às 21h no Grande Auditório do Rivoli), Concerning Violence é todo um programa.

Porque transcende o formato documentário para se tornar num ensaio sobre a relação entre a história, a sociedade, a identidade e a política; porque fala aos nossos dias desde um passado do qual muitos ainda guardam memórias pessoais. Prosseguindo o trabalho de “arqueologia” realizado nos arquivos da televisão sueca iniciada com The Black Power Mixtape Vol. 1, o cineasta sueco Göran Hugo Olsson propõe um exercício de montagem à volta dos conflitos de independência das colónias europeias em África, usando reportagens realizadas nos anos 1970 em Angola, Rodésia (actual Zimbabwe), Libéria, Tanzânia, Moçambique e Guiné-Bissau, mais um “epílogo” no Burkina-Faso, “organizadas” em “nove cenas de auto-defesa anti-imperialista”.

O que torna Concerning Violence bem mais do que um simples trabalho de redescoberta de arquivos é o dispositivo formal de Olsson, que sobrepõe a estas imagens de época excertos da obra do pensador da Martinica Frantz Fanon Os Condenados da Terra, lidos pela cantora Lauryn Hill. A utilização das palavras de Fanon – escritas em 1961, antes da maioria dos acontecimentos mostrados, mas sobrepostas às imagens em 2013, num momento em que conhecemos já o resultado da independência destes países - recontextualiza estes conflitos anti-coloniais no seu momento histórico, social e político. As circunstâncias que os atearam em cada país eram sintomas específicos locais de um mal-estar generalizado e abrangente, exemplificado em situações de inexplicável e aleatória injustiça de uma cultura colonial condescendente e desinteressada na própria identidade dos países colonizados.

O mais assustador em Concerning Violence nem é a sensação de inevitabilidade de conflito que as imagens – pontualmente gráficas – destas guerras transportavam. O mais assustador é o dedo que as palavras de Fanon apontavam a uma civilização ocidental que acusava de moralmente falida e sem rumo, e a um capitalismo selvagem anti-humanista. Essas palavras ressoam hoje, em 2014, como estranhamente actuais, quando a Europa parece de novo buscar um rumo e as questões raciais reemergem de modo preocupante por todo o mundo ocidental – como se a história se estivesse a repetir.

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