David Bowie ao espelho

Uma retrospectiva aproxima-nos do mistério David Bowie.

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David Bowie foi um criador influenciado e influenciador das mais diversas expressões artísticas DR

Na capa de Nothing Has Changed David Bowie olha-se ao espelho. Não é a primeira vez que o faz. Compilações dele que constituam retrospectivas de carreira não faltam por aí. Mas esta não é uma simples antologia de êxitos, como teria sido fácil concretizar. Nota-se um olhar cuidado. Uma leitura. 

Há três versões desta antologia. A mais curiosa talvez seja aquela que começa por ordem cronológica, mas em sentido invertido, dos temas mais recentes até aos mais antigos, como se, através desse gesto, Bowie nos quisesse mostrar que se mantém perfeitamente actual. E é difícil não concordar, ouvindo Sue (Or in a season of crime), a canção mais longa das 59 incluídas, Where are we now? (do surpreendente álbum de regresso de 2013, The Next Day), ou a recriação de James Murphy (LCD Soundsystem) para Love is lost

A primeira canção é precisamente essa Sue (Or in a season of crime), longa digressão de inspiração jazzística gravada este ano com a Maria Schneider Jazz Orchestra que revela a faceta do Bowie mais pertinente, capaz de assimilar ideias aventureiras num vocabulário de inteligibilidade pop. Aliás essa variável está sempre presente. As canções não se fixam numa tipologia (do rock à dança), as roupagens vão mudando, a plasticidade vai-se revelando, embora a estrutura pop se mantenha sempre. E depois existem algumas surpresas, como três canções referentes ao álbum nunca editado, Toy, ou a escassa representação da trilogia de Berlim (com os inevitáveis Heroes e Sound and vision, sublinhados apenas por Boys keep swinging), por muitos vista como a sua fase mais criativa. 

Desde os anos 1960 ele foi Ziggy Stardust, Aladdin Sane e Thin White Duke. Foi modhippie e glam-rocker. Antecipou o punk, inspirou-se na electrónica alemã dos anos 1960, beneficiou da euforia provocada pela MTV nos anos 1980, aproximou-se da vaga dançante nos anos 1990 — tudo isso está aqui exposto. Foi-se reinventado, mas sem nunca deixar de ser ele próprio, existindo actualmente a um nível distinto na cultura popular. 

Nem sempre é fácil perceber se é ele que se adapta aos acontecimentos ou se contribuiu de forma determinante para a sua emergência. O seu segredo é esse, tendo sido capaz de incarnar ideias colectivas e transformá-las em canções suas. 

Como nos dizia, no ano passado, o seu último biógrafo, o inglês Paul Trynka, Bowie é alguém indefinido que se expôs muito, mas que manteve sempre uma certa distancia, um mistério, uma mística, que leva as pessoas a desejarem saber mais, ouvir mais, estar mais próximas. Esta retrospectiva permite-o.

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