Uma ópera para a mulher mais bela

A estreia de Páris e Helena é na sexta-feira em Lisboa, no CCB, com coro, solistas e orquestra. Mas fomos foi ver o que se passou antes. Será mesmo possível o amor de Páris por Helena, a mulher mais bela de todas, ou é só uma armadilha dos deuses?

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O maestro Marcos Magalhães é bem alto, e se levanta os braços então fica enorme em cima do palco do pequeno auditório do CCB onde estão a ensaiar Miguel Manso
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Foto do ensaio Miguel Manso

Vai começar pontualmente. Mas ainda dá tempo para um cafezinho, que os deuses estão a conferenciar, a ver que travessura farão a Páris, o troiano.

Marcos Magalhães inicia o primeiro ensaio no Centro Cultural de Belém (CCB) com cantores e orquestra. São os Músicos do Tejo, o grupo de música antiga que Marcos mantém com Marta Araújo e companhia. Ela coordena o espectáculo e vários aspectos da produção, ele dirige musicalmente esta ópera de Christophe Willibald Gluck (1714-1787), compositor alemão, o reformador da ópera que entre Viena e Paris quis tirar o tapete ao "poder absoluto" dos castrati, que já era demais andar assim a fazer piruetas vocais, ignorando o drama e destruindo a música em favor do virtuosismo. Pelo menos era o que dizia Gluck, preocupado com os "abusos" dos cantores na ópera. Toca a acabar o café, que o ensaio vai começar.

"Compasso 25!" O maestro Marcos Magalhães é bem alto, e se levanta os braços então fica enorme em cima do palco do pequeno auditório do CCB onde estão a ensaiar. Dá indicações de tempo, de dinâmica, de carácter - "vigoroso", "sem atrasar", "romântico!". Gluck, romântico? O maestro explica-nos: "Gluck é já pré-wertheriano. Há um romantismo que se está a condensar e prestes a explodir. O amor é tão apaixonado... Páris e Helena é uma ópera psicológica, romântica, realista. Tudo é pormenorizado no movimento da paixão. Pouco depois, um génio, Goethe, fez o Werther."

O director musical inscreve assim Gluck num movimento de transformação, e puxa-o para a frente, naquilo em que ele rompe com os "artificialismos" da ópera barroca. Na dedicatória ao Duque de Lafões (homem culto e abastado, embaixador português em Viena naqueles tempos), Gluck avisa que a ópera "não tem grandes acções dramáticas", é antes uma viagem pelas lutas interiores do amor. Mas o pano de fundo são as lutas políticas também: pois se Páris é de Tróia e Helena de Esparta, como pode isto dar certo? Ainda por cima ele sente-se enganado. Pausa no ensaio, para uma explicação.

Se é próprio dos mitos estarem sempre a ser recontados, contemos então rapidamente: Páris foi dar prémios aos jogos de atletismo, embora não percebesse nada daquilo, e as deusas tentam suborná-lo, cada uma a puxar a brasa à sua sardinha: Atena diz que lhe dá o conhecimento, Hera diz que lhe dá a riqueza, e Afrodite diz que lhe dá a mulher mais linda do mundo. Ele escolhe o amor e toca a ir raptar Helena, a mais bela, no campo adversário. Claro que uma guerra tinha de começar - a guerra de Tróia. Mas Páris sente-se enganado: então não é que ela já era casada?

Para Pedro Braga Falcão, violetista mas também especialista em cultura clássica, "a ópera é na verdade um atropelo à mitologia clássica. O mito é um pretexto. O que importa para o libretista Calzabigi e para Gluck é moldar o mito consoante os tempos pediam, actualizar o mito e falar de histórias de amor do quotidiano."

Primeiro o efeito, depois a regra

Retomemos o ensaio. Uma suspensão aqui, uma acentuação ali. Marcos insiste, em diálogo com a soprano Ana Quintans na busca da expressão justa. A dinâmica da orquestra tem de ajudar, à procura do equilíbrio das vozes. Os instrumentos também cantam, e até o maestro, de vez em quando. Acerta-se o balanço, trabalha-se um detalhe com uma das vozes, chegam mais sopros, os oboés e as trompas, um fagote e de repente... o drama surge em pleno ensaio, mesmo de luzes acesas. Chegou-se ao "efeito", como queria Gluck: "Não há regra que me não achasse no direito de pôr de lado por amor de um efeito propositado".

Helena é nesta produção a cantora Ana Quintans. Ela diz-nos um pouco das novidades de linguagem desta ópera que a obrigam a trabalhar coisas novas: "Já fiz muita coisa com os Músicos do Tejo, mas neste repertório não. É outra linguagem, outro tipo de trabalho. Os recitativos acompanhados foram muito trabalhados para procurar a expressão certa." É uma das novidades de Gluck, que deixa os recitativos "secos". Joana Seara, soprano, aqui no papel de Cupido, explica um pouco mais em detalhe: "Nos recitativos tivemos de trabalhar muito bem a métrica, porque estamos sempre com a orquestra e não só com baixo contínuo."

Susana Gaspar e Ana Paula Russo completam o elenco com quatro sopranos, outra curiosidade desta ópera. Susana Gaspar é Páris, o jovem bem parecido e honesto. Para ela, que não tinha ainda colaborado com os Músicos do Tejo, é tudo uma novidade: "A equipa, o repertório, o estilo, para mim é tudo uma estreia." Mas diz, com um sorriso, "sentir-se em casa". Não será por acaso: o ambiente do ensaio é profissional mas descontraído, e Marcos Magalhães parece ter a sensibilidade para lidar com os músicos de forma criativa. "Ele tem ideias muito específicas sobre o que quer, mas também procura a nossa opinião", diz Ana Quintans. Para Joana Seara, "há um ambiente de amizade que nos consegue pôr mais à vontade". Na viola d'arco, Pedro Falcão também sente isso: "Há um ambiente muito livre e há espaço para o intéprete ser ele próprio. E há muito carinho pelos intérpretes portugueses, pelos cantores. O resultado é de uma qualidade que pode competir com qualquer orquestra barroca europeia." Mas o violetista sublinha ainda outro aspecto que considera importante: "O Marcos é muito curioso, faz-nos reflectir sobre o libreto e vir para o ensaio com uma ideia da obra. Isso faz parte de ser músico."

Impressionar ou comover?

Calma, que o ensaio não acabou. "Parte 7B!" Tiriri, tiriri. "Telemóveis? Isso é que não", diz Marcos Magalhães, e há um pequeno momento de risota. Mas logo a música recomeça e o director musical não perde tempo. Há ainda muito trabalho a fazer, para chegar aos dramas interiores. Marcos, meio a brincar, designa até um trio desta ópera de "Trio Ingmar Bergman", tal é a densidade interior psicológica das personagens que falam, nesse caso, para si mesmas. Os Músicos do Tejo incansavelmente fazem perguntas, acertam timbres. "O que parece evidente tem de se pôr sempre em causa. Até porque só há uma edição da época e não se encontrou o manuscrito do Gluck", diz o director musical. A edição utilizada foi feita e revista por Nicholas McNair para uma produção do estúdio de ópera da Escola Superior de Música, em 2012.

Páris, troiano, insiste na mulher mais bela do mundo. Ela, espartana, dá-lhe para trás. Dar-se-á um encontro de culturas, uma trégua, aquecerá a paixão com a música? "Numa cena fulcral da ópera, Páris canta um romance gigantesco, estrófico, uma espécie de modinha. É um acto político e estético, colocar esta cançoneta num momento-chave. Séculos antes da rádio e do disco nos submergir com a indústria da canção", diz Marcos Magalhães. Páris não impressiona Helena com virtuosismo, mas com a simplicidade da emoção, com uma simples canção e diz: "Não quero impressioná-la, quero comovê-la." Para a ópera de Gluck, esta frase soa como um manifesto.

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