Dispositivos sonoros

Ricardo Jacinto continua a escutar os sons do mundo

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Os teares que em tempos ocuparam a Appleton Square voltam àquela galeria através da instalação sonora de Ricardo Jacinto Francisco Nogueira

Importa começar por dizer que o trabalho de Ricardo Jacinto (n. Lisboa, 1975) não tem um território disciplinar definido e unívoco, mas situa-se entre a arquitectura, a escultura e a música. Mas dizer isto é dizer pouco sobre um trabalho complexo, profundo em que o espaço, a sua construção, a sua ocupação e, sobretudo, a sua vivência são os temas principais. Podia-se dizer que a unir os trabalhos deste artista está a ambição de perceber o modo como o som se forma, quais os seus mecanismos de criação e difusão — uma espécie de fenomenologia do som em que os corpos (o corpo humano, o corpo emissor de som, o corpo amplificador, etc.) são os elementos essenciais.

Se a uma primeira aproximação as obras deste artista podem parecer simples explorações formais das estruturas arquitectónicas e escultóricas com que interage ou que constrói, depois descobre-se que essas explorações correspondem a uma inquietação que impede os seus trabalhos de se desenvolverem na direcção da forma pela forma ou da arte pela arte. As suas energias criativas estão investidas e dirigidas para questionar não só a natureza das forças que configuram o espaço; através dos dispositivos que cria, descobre-se a natureza emissora dos lugares e dos objectos, ou seja, as obras deste artista mostram o espaço não como uma forma que contém um acontecimento, mas como um poderoso dispositivo emissor a partir do qual se propaga uma nova dimensão sensível, física, corpórea. Pode considerar-se que, independentemente da forma e dos aspectos finais das obras de Ricardo Jacinto, trata-se sempre de criar elaborados dispositivos através dos quais o artista quer escutar os sons do mundo. 

Não se trata de uma formula poético-sentimental, mas de realmente se colocar em situação de escuta, à qual corresponde uma imensa actividade de pesquisa, de procura, de invenção. Na exposição de Guimarães, O Parque: Os Cones e Outros Lugares, o artista mostra um conjunto de cartas com um destinatário desconhecido e cujo remetente podemos identificar como sendo um investigador envolvido num projecto entre a antropologia, a etnografia, a geografia, a antropologia e a arte. Importante não é o conteúdo de verdade das cartas ou as pistas que elas possam fornecer para decifrar o imenso enigma das obras de Jacinto, mas a maneira como mostram a atmosfera em que o seu trabalho se desenvolve e na qual as perguntas, a observação, o cuidado com a linguagem e a capacidade inventiva são determinantes.

Espaço, som, forma são as matérias primordiais deste artista. Matérias de que se apropria, que transforma e, sobretudo, que põe ao uso da pesquisa sonoro-espacial que tão bem caracteriza o seu trabalho. E são essas matérias que unem as duas excelentes exposições que agora apresenta em Guimarães e em Lisboa. Em Guimarães é recuperado o projecto Parque, que o artista desenvolveu entre 2001 e 2007, activando-o a partir do presente. Esta exposição retoma trabalhos que o artista já tinha apresentado, mas, dada a relação crítica com o espaço que todas as suas obras possuem, descobrem-se novas camadas e temas, e as obras experimentam-se não como revisitações, pois há elementos de novidade.

Em Lisboa o projecto que apresenta na Appleton Square — obra, instalação, performance — não é só uma relação com o espaço da galeria, o seu cubo branco, a sua carga ideológica, mas também com a sua memória, à qual chegamos através dos sons dos teares que ocuparam aquele sítio, em tempos uma tecelagem. O artista recuperou os sons que ali costumavam estar, a que adiciona o som do seu violoncelo (obtido durante a performance), reenviando-os para o espaço expositivo através de vigas metálicas. As vigas redesenham o cubo branco, vincando-lhe qualidades estruturais, e tratam o vazio como superfície, não o anulando mas actuando sobre ele. A atravessar todos estes elementos, uma luz que se materializa numa imagem fixa na parede e que metamorfoseia toda a instalação numa espécie de grande e elaborado desenho. 

Importa sublinhar um ultimo aspecto: o mistério e a surpresa que os trabalhos de Ricardo Jacinto possuem sempre e que não são um simples retórica. Esses truques, essa espécie de ilusionismo, não são elementos de distracção ou de entretenimento, antes apresentam as condições necessárias (uma espécie de metafísica da arte) da vida das coisas artísticas. Portanto, os dispositivos sonoros redescobrem-se como dispositivos de exploração da relação da arte com o espaço, o corpo, a inteligência.

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