Cenas da vida familiar

O tempo que passa é o verdadeiro tema do melhor filme de Richard Linklater, rodado ao longo de doze anos.

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Ao princípio de Boyhood, quando Mason (Ellar Coltrane), o miúdo cujo crescimento acompanhamos ao longo de uma década, tem apenas seis anos, vemo-lo a ouvir no quarto a mãe (Patricia Arquette) a discutir com um namorado e a dizer que, entre trabalhar e criar sozinha dois filhos, “já não sei o que é ir ao cinema ou sair à noite”.

Já perto do final, quando Mason está à beira de partir para a faculdade e recolhe os últimos pertences, agora que finalmente os filhos já são maiores e vacinados e estão fora de casa e ela pode “voltar a ter uma vida”, a mãe diz “é o pior dia da minha vida”. “É só isto? Pensei que houvesse mais alguma coisa.”

É precisamente esse “só isto” que está no centro do filme com que Richard Linklater sucede à trilogia de culto formada por Antes do Amanhecer, Antes do Anoitecer e Antes da Meia-Noite - de caminho o melhor filme de uma obra inquieta mas irregular. A vida é, de facto, “só isto” - este retrato de uma adolescência banal, marcado pela simplicidade das conversas encavacadas com a família ou dos primeiros beijos ou das primeiras bebedeiras, pode no entanto ser muito mais do que pode parecer. Basta parar e, mais do que olhar, ver. É a isso que Linklater nos desafia ao longo de quase três horas, rodadas em intervalos incrementais ao longo de doze anos: a ver cenas de uma vida familiar, banal. Porque é o tempo que dá ressonância às coisas, e o que agora nos parece descartável ou desinteressante pode, com o tempo, ganhar uma relevância completamente diferente. O verdadeiro tema de Boyhood é o tempo que passa, e como, ao passar, vai estratificando uma narrativa, uma personagem, uma identidade – as três horas do filme não só não são supérfluas como cristalizam a sua própria essência. Porque, ampliado para o écrã grande, visto com o recuo do tempo que passa, é o banal que faz de nós quem somos.

Linklater não está aqui para nos enfiar lições de moral pela goela abaixo nem para pintar as coisas de cores garridas: ninguém neste filme, a começar pelos pais divorciados (Arquette e o cúmplice Ethan Hawke), é santo, nunca ninguém disse que isto é fácil e a vida não vem com manual de instruções. É por isso que, chegados ao fim, temos a sensação de ter visto a vida como ela realmente é. E poucos – quase nenhuns - filmes o mostraram com tanta e tão desarmante simplicidade. 

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