Decência, justiça, regime e presidenciais

Um processo judicial com este impacto político e institucional no sistema reforça o sentimento de desencanto e de desconfiança da opinião pública e dos eleitores em face da classe política.

1. Antes de alinhar alguma reflexão – de resto, já antiga – suscitada e ressuscitada pelo processo em que é arguido José Sócrates, nunca será demais sublinhar o valor fundamental da presunção de inocência. E, por isso, não questionando a pertinência da detenção em pleno aeroporto (que pode perfeitamente justificar-se), impõe-se criticar abertamente o inexplicável conhecimento de horas, locais e factos por meios de comunicação social. Mas também e ainda o estilo de cobertura mediática entretanto adoptado, sempre focado em captar imagens do interior do edifício do tribunal ou de dentro das viaturas de transporte dos detidos, que nada acrescentam em sede informativa e que vulneram dolorosamente a privacidade.

Não menos degradante julgo ser a repetição obsessiva, exaustiva e interminável de imagens de arquivo de José Sócrates, com efeitos estigmatizantes óbvios. Trata-se de um procedimento aviltante da dignidade pessoal dos arguidos e altamente lesivo e penalizante para os seus familiares e íntimos, que, em momentos tão difíceis, merecem recato e respeito. Esta preocupação ética e humana nada tem que ver com o normal devir da investigação, que deve decorrer sem mãos trémulas, e nada tem que ver com qualquer deferência para com os arguidos. É apenas um imperativo de decência, válido para todo e qualquer um. No entanto, e ao contrário do que aqui ontem escrevia João Carlos Espada – a quem ainda devo um artigo sobre outras matérias –, o frenesim português chega a ser tímido e benevolente quando comparado com a virulência dos media britânicos. Não deixa, aliás, de ser estranho que se invoque o exemplo britânico como padrão de fleuma e de comedimento, tal é a frequência e a intensidade com que ali se desrespeita a mais elementar decência (veja-se o recente escândalo do News of the World ou o case study de Diana de Gales).

2. O comentador Pedro Adão e Silva parece ter-se escandalizado com afirmação de que o século XXI será o século dos tribunais (pelos vistos, incluída num documento das estruturas sindicais de magistrados). Compreendo que a instância sindical não é a sede própria para enunciar proposições de ciência política ou de teoria da constituição e que isso dê azo a preocupação. Mas, desde 2001, há algo que escrevo sem cessar nestas páginas e que recenseei em livros que fui publicando: a desterritorialização do poder e o fim do monopólio estadual do poder político enfraquecem os centros legislativos e executivos e valorizam o poder judicial como pólo de arbitragem e de regulação político-constitucional dos conflitos sociais. Numa sociedade poliárquica, com múltiplos centros de poder, de fronteiras abertas e porosas, a capacidade de afirmação do eixo de poder legislativo-executivo diminuiu francamente. Daí que, diante dos problemas hodiernos, os governos e os parlamentos dos Estados nacionais revelem uma reiterada dificuldade de resposta. Nas democracias pós-territoriais, o lugar e o papel dos tribunais vai ser seguramente muito mais relevante e muito mais visível do que foi até aqui. Claro que isso obriga a repensar o poder judicial, a mexer nos pilares da sua legitimidade, a rever o modus da sua organização, a reequacionar os termos do processo jurisdicional e a ponderar as regras da responsabilidade dos seus titulares. Se aos tribunais couber uma função e um poder de regulação político-social (constitucional e conformadora), naturalmente que é necessário operar uma “religação” democrática à sociedade, ao povo, ao “demos”. 

Ocorre, todavia, que o tipo de situação em jogo no processo em que alegadamente está envolvido José Sócrates não pertence ao âmago desta nova fenomenologia constitucional (própria das democracias “pós-estaduais”). E, bem ao contrário, inscreve-se numa competência tradicional do poder judicial, que desde sempre teve como primeira missão a tutela da legalidade criminal, mesmo quando esta diz respeito aos actos praticados por titulares de cargos políticos ou ao exercício de funções públicas. Nada de novo debaixo do sol, portanto. Não se cura, pois e ainda, da inauguração de uma nova era; pode, isso sim – mas isso só os próximos tempos o dirão –, tratar-se do epílogo de uma era velha.

3. São abundantes, com efeito, os sinais de desgaste do regime. De resto, como procurou explicar-se aqui na última semana, não são sequer sinais privativos da experiência política portuguesa: estão disseminados, com matizes e diferenças, por todo o continente europeu. De há muito que comungo da ideia de que há uma “fadiga do regime” e de que algumas rupturas – mesmo institucionais – são necessárias e/ou convenientes.

Um processo judicial com este impacto político e institucional no sistema reforça o sentimento de desencanto e de desconfiança da opinião pública e dos eleitores em face da classe política. E nesse sentido, pode favorecer a onda daqueles que, por boas ou por más razões, querem regenerar ou renovar o regime. As análises políticas dos efeitos de um caso judicial com estes contornos, têm-se cingido, porém, ao impacto que ele pode ter nas eleições legislativas do próximo ano. Uns, achando que criará o pasto para finalmente surgir um poderoso movimento populista “anti-políticos”; outros, crendo que apenas alterará as expectativas de partida quanto ao resultado das diferentes forças políticas; outros ainda, debruçando-se sobre o modo como o PS deverá encarar este difícil transe.

4. Curiosamente, todos parecem ter olvidado o efeito que o caso pode ter sobre as eleições presidenciais. E nem tudo se esgota na dança dos nomes, que o processo, de um ou de outro modo, também afectará. A ideia de reforma do regime e de revigoramento das instituições parece-se adequar-se mais a um programa presidencial do que a um cardápio legislativo.

SIM e NÃO

SIM. Papa Francisco. A escolha do Parlamento Europeu para uma visita é, em si mesma, antes e para lá de qualquer discurso, uma mensagem para a Europa. A Europa precisa de quem lhe fale.

NÃO. Bloco de Esquerda. O divisionismo crónico da esquerda radical chegou ao limite do impasse e da incapacidade de encontrar uma liderança. O Bloco parece conhecer o ocaso.

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