Tunísia: o antigo regime pode voltar ao país onde a revolução nasceu

Uma segunda volta entre o líder do partido que venceu as legislativas e o actual Presidente, veterano dissidente da ditadura, ainda é possível, mas Béji Caïd Essebsi, veterano político da ditadura, pode ser eleito já este domingo.

Foto
Há 24 candidatos, mas a luta é entre Essebsi e Moncef Marzouki ZOUBEIR SOUISSI/REUTERS

Foi o país onde começou a vaga de protestos que em 2011 prometeu abalar ditaduras do Magrebe ao Golfo Pérsico e é o único onde a revolta ainda pode dar lugar a uma democracia estável. Mas o regresso do antigo regime pela via eleitoral é um cenário plausível e pode começar a desenhar-se se Béji Caïd Essebsi, ex-ministro do pai da independência, Habib Bourguiba, e antigo primeiro-ministro de Ben Ali, o ditador derrubado em Janeiro de 2011, for eleito Presidente já este domingo.

São 24 (começaram por ser 27) os candidatos que se apresentam às presidenciais que acontecem cinco semanas após as legislativas. Mas, na prática, este é um duelo entre Essebsi e Moncef Marzouki, presidente em exercício, líder do Congresso para a República, defensor dos direitos humanos que foi preso em 1994, depois de concorrer contra Ben Ali. Marzouki saiu do país pouco depois e só regressou do exílio dias após o derrube do ditador, quando foi recebido em lágrimas por dezenas de opositores no aeroporto de Tunes.

Na sexta-feira foram conhecidos os resultados finais das legislativas de 26 de Outubro. O partido de Essebsi, o Nidaa Tounès (O Apelo da Tunísia), que junta membros do antigo regime, empresários, políticos de centro-direita e de extrema-esquerda, elegeu 86 dos 217 deputados da Assembleia de Representantes do Povo, enquanto os islamistas moderados do Ennahda (Renascimento), vencedores das legislativas de 2011, obtiveram 69 lugares. Juntos, controlam mais de dois terços de uma Assembleia onde a maioria de 109 lugares obriga o vencedor a negociar.

Muito atrás ficaram a União Patriótica Liberal, de Slim Riahi, o milionário que é presidente de um dos principais clubes de futebol do país, o Club Africain, com 16 lugares, e a coligação de esquerda e extrema-esquerda Frente Popular, que elege 15 deputados. Os partidos de Marzouki e de Mustapha Ben Jaafar, que presidiu à Assembleia Constituinte, segundo e terceiros há três anos, quase desapareceram, castigados por se terem aliado ao Ennahda.

O Ennahda não apresenta candidato presidencial e oficialmente não apoia ninguém, mas os seus militantes deverão votar em Marzouki, receosos da concentração de poderes que se avizinha para o Nidaa Tounès. Marzouki fez uma campanha discreta, enquanto Essebsi organizou grandes comícios nas principais cidades do país. E, tal como fizera nas legislativas, aproveitou a campanha para negociar com rivais e aumentar a sua base de apoio.

Um compromisso?                                                                
Álvaro de Vasconcelos, o académico português que acaba de regressar da Tunísia, onde organizou uma conferência sobre alguns dos países das revoltas de 2011, ainda acredita num cenário de compromisso e diz que há um “compromisso entre o Ennahda e o Nidaa Tounès para que o próximo presidente da Assembleia seja um membro do Ennahda, o chefe do Governo seja um independente e o presidente do Tribunal Constitucional seja escolhido de forma consensual” pelas duas forças.

Este cenário, diz o autor de As Vozes da Diferença — A Vaga Democrática Árabe, é defendido por vários movimentos, incluindo a principal central sindical do país, a UGTT, que foi fundamental na negociação que travou a crise de 2013, desencadeada pelo assassínio de dois políticos de esquerda, mortos por radicais salafistas. Foi nessa altura que o Ennahda aceitou deixar o poder e entregá-lo a um governo de tecnocratas.

Mas se Essebsi tiver uma vitória significativa, já na primeira volta, “os sectores mais conservadores do Nidaa Tounès podem pensar ‘ganhámos tudo’, não precisamos disto”, admite Álvaro de Vasconcelos. O académico sublinha a importância do nome do presidente do Tribunal Constitucional, que será escolhido em conjunto pelo primeiro-ministro, o chefe de Estado e o poder judicial. “O que se discute é como evitar que um mesmo partido controle as principais instituições e garantir que não haverá um golpe constitucional.”

O Nidaa Tounès já provocou um debate polémico em torno na Constituição tunisina, o texto moderno e inclusivo aprovado no início do ano. Segundo a Constituição, o partido vencedor deveria ter esperado que o Presidente o chamasse para declarar vitória, o que não aconteceu, e já tinha de ter nomeado um chefe de Governo, o que também não se verificou. O partido de Essebsi argumenta que a Constituição só entra em vigor no fim do processo eleitoral que termina com as presidenciais, mas a maioria dos constitucionalistas discorda.

Essebsi, 87 anos (terá 88 a 30 de Novembro, data da segunda volta), apresenta-se como herdeiro de Bourguiba, que descreve como um “visionário”. “Queremos um Estado do século XXI, um Estado de progresso. O que nos separa deles são 14 séculos”, repetiu na campanha das legislativas. Entretanto, o político que usa versículos do Corão e provérbios tunisinos nos seus discursos, já admitiu que “o Ennahda faz parte integrante da vida política tunisina”.

Filhos da Tunísia
Sem o Ennahda e a sua vontade de consenso, nem Essebsi nem vários dos candidatos destas presidenciais se poderiam ter apresentado a votos. Todos regressaram à política quando o partido de Rachid Ghannouchi, primeiro-ministro entre 2011 e 2013, deixou cair na Assembleia Constituinte, que dominava, a chamada lei de “imunização da revolução”, que excluiria os responsáveis do antigo regime do processo eleitoral.

O próprio Essebsi foi acusado em 2012 por um movimento de oposição a Ben Ali, os Youssefistas, torturados quando o candidato à presidência era Ministro do Interior. “Sou um cidadão como todos os outros, a minha consciência está tranquila. Geralmente acusam-me de coisas que não fiz, mas temos de nos justificar”, disse, numa entrevista ao Huffington Post tunisino.

Sobre a comissão da verdade e da justiça, cujo trabalho acaba de começar e que deverá julgar os crimes da ditadura, Essebsi diz defender que sejam identificados os que cometeram crimes mas está contra “os ajustes de contas com o passado”. “Penso que devemos olhar mais para o futuro porque a Tunísia precisa de todos os seus filhos nos próximos dois anos.” Sobre os membros do partido de Ben Ali (RDC) que integram o seu movimento afirma que “continuam a ser cidadãos e têm direito a participar na vida política, o contrário seria como se lhes tivesse sido tirada a nacionalidade e ninguém pode fazer isso a não ser a justiça”.

Pluralismo e ideologia
“Em tempos de grande mudança na região árabe, as lutas políticas são muitas vezes vistas exclusivamente à luz das lentes da ideologia, criando a impressão de um escolha entre islamistas e secularistas”, escreveu o ex-primeiro-ministro Ghannouchi num artigo publicado há dias no New York Times.

“Esta visão muitas vezes ignora o pluralismo considerável que existe nas tendências políticas, tanto na Tunísia como noutros países árabes. Os islamistas não são só de diversos tipos, também evoluíram muito ao longo do último século”, afirma Ghannouchi, explicando que, para o Ennahda, as legislativas “não foram sobre o papel do islão na sociedade mas sobre o desemprego, um crescimento económico mais inclusivo, o desenvolvimento regional e a desigualdade dos salários”.

Ghannouchi quer continuar a ter um papel na transição tunisina, que Álvaro Vasconcelos diz estar por terminar. “Normalmente, considera-se que uma transição política fica completa depois de duas eleições legislativas e de uma alternância no poder. Isso está feito, mas a democracia na Tunísia está por consolidar, ainda há um risco de retrocesso”.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários