Hospital de S. João denuncia “farmacêutica hostil” que pede 97 mil euros por fármaco da hepatite C

Queixa contra a norte-americana Gilead Sciences vai chegar à Provedoria de Justiça e à Entidade Reguladora da Saúde.

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Seriam precisos 65,5 milhões para o S. João tratar a hepatite C Rui Farinha

O presidente do conselho de administração do Centro Hospitalar de São João, no Porto, denunciou através de um comunicado que a farmacêutica norte-americana Gilead Sciences fixou para este hospital o preço do medicamento inovador para a hepatite C em 97.620 euros por cada doente, um valor que mesmo assim ficou abaixo dos 111.996 propostos inicialmente.

António Ferreira adiantou que a encomenda será feita para os doentes que necessitam, mas apelidou o laboratório de “fornecedor hostil” e vai levar o caso a várias entidades, nomeadamente à Provedoria de Justiça e à Entidade Reguladora da Saúde.

Na nota, o centro hospitalar começa por explicar que recebeu autorização da Autoridade Nacional do Medicamento (Infarmed) para “iniciar tratamento de quatro doentes com hepatite C com a associação dos novos medicamentos antivirais sofosbuvir e daclatasvir”. Em ambos os casos, por ainda não haver uma aprovação da comparticipação, por parte do Infarmed, a utilização apenas é feita quando os pedidos de autorização recebem luz-verde.

O segundo medicamento pertence à também norte-americana Bristol-Myers Squibb, mas será “fornecido no âmbito de um programa de acesso específico da empresa que o comercializa e, portanto, a custo zero”. Porém, o medicamento escolhido para cada doente depende do genótipo do vírus da hepatite C. Já a Gilead, diz António Ferreira, foi contactada para acordar um preço e “manifestou-se inflexível, fixando o preço do fornecimento, inicialmente, em 111.996 euros por doente tratado (ou seja, 18.666 euros por embalagem equivalente a um mês de tratamento)”. Um contacto telefónico posterior permitiu baixar o preço global para 97.620 euros (16.270 por embalagem).

O PÚBLICO procurou obter uma reacção junto da Gilead, mas ainda não foi possível. Até agora o valor que tem vindo a ser divulgado, e que já foi considerado “imoral” pelo Infarmed e pelo ministro da Saúde, é de 48 mil euros por doente – um preço, ainda assim, muito abaixo do referido pelo S. João. O tratamento pode variar de 12 a 24 semanas e o preço divulgado pelo centro hospitalar corresponde à duração máxima. Para 12 semanas, com o valor de 16.270 euros, o preço final seria de 48.810 euros, mais próximo do que vem sendo repetido.

“Neste contexto, o Centro Hospitalar de São João efectuará a encomenda do produto a este preço e declara a empresa Gilead como fornecedora hostil, proibindo qualquer tipo de contacto entre os seus serviços e esta empresa (com a excepção da emissão de notas de encomenda, recepção dos produtos e respectivos pagamentos)”, lê-se no comunicado, que alerta que o centro hospitalar necessitaria de “65,5 milhões de euros para assegurar o tratamento de todos os doentes potencialmente curáveis” seguidos no S. João e que são 895.

“Este valor representa um acréscimo de 89% na despesa total anual em medicamentos” e leva à “insustentabilidade desta unidade de saúde”, reforça António Ferreira, que informa que encarregou “o gabinete jurídico de comunicar estes dados à Provedoria de Justiça; à Comissão Parlamentar dos Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias; à Comissão Parlamentar de Saúde; ao Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e à Entidade Reguladora da Saúde”.

A informação surge na mesma semana em que o Infarmed avançou ao PÚBLICO que autorizou, desde Setembro, 49 pedidos para tratar com fármacos inovadores os doentes com hepatite C em risco de evoluírem para uma situação mais grave, como cirrose ou cancro do fígado. Há ainda 32 que estão em processo de avaliação para poderem ter acesso ao fármaco e quatro que foram indeferidos no âmbito das chamadas autorizações excepcionais, solicitadas pelos hospitais enquanto o medicamento não é aprovado para todos os doentes que reúnam os critérios necessários.

As autorizações foram dadas na sequência de um plano transitório que o Infarmed definiu em Setembro para poder tratar com o sofosbuvir, até Dezembro, os 100 a 150 portugueses que se prevê que durante o próximo ano possam estar em risco de vida na sequência do agravamento da infecção pelo vírus. Em 2015 a ideia é chegar a mais de 1000 pessoas. O plano destina-se apenas aos casos mais urgentes, enquanto o regulador do medicamento negoceia com a indústria farmacêutica um preço que o Serviço Nacional de Saúde consiga pagar. Ao todo, de acordo com os dados do Infarmed, há mais de 13 mil doentes com hepatite C registados nos hospitais e que serão divididos em grupos, consoante a fase da doença e o tipo de tratamento de que precisam.

Em reacção à denúncia do S. João, o ministro da Saúde também usou a palavra “hostil” para descrever o caso. "Eu acho hostil é terem pedido 400 mil euros para tratar 4 doentes e que reparem, o S. João disse que sim", afirmou Paulo Macedo, citado pela Lusa, à margem de uma cerimónia no Porto, reforçando que é preciso pensar nos “reflexos para o resto do sistema” destes preços praticados pela indústria.

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