De regresso ao pântano

Alguém se lembra que o ministro Miguel Macedo se demitiu há uma semana? Pois, a memória não chega para tanto. No espaço de dias soubemos de uma teia de suspeitas de corrupção que envolve altas figuras do Estado, verificámos que há duas empresas de referência, a REN e a Galp, que desafiam sem pudor a autoridade do Estado, confirmámos que as empresas de auditoria e os organismos de supervisão financeira estão montados para deixar passar práticas inqualificáveis como as que aconteceram no BES e assistimos ao desplante de dois deputados a reclamar o regresso por inteiro das subvenções vitalícias dos políticos. Depois, como cúmulo, soubemos da detenção de um ex-primeiro ministro, José Sócrates, por suspeitas de crimes graves. Com tanta miséria no ar, a demissão de um ministro não passa de um fait-divers.

A um ritmo frenético, compulsivo, Portugal desmorona-se. A dimensão dos escândalos alarga-se, as fragilidades do Estado acentuam-se, a bazófia dos poderosos cresce, a arrogância dos políticos multiplica-se. A podridão contaminou a vida pública, da esfera dos altos funcionários aos chefes de polícia, das trapaças de empresários à alegada influência de um ex-primeiro-ministro. Com Sócrates no centro do furacão, a II República entrou definitivamente no estertor. O medo do futuro voltou, mais negro do que nas antevésperas da troika. O risco de se perder o pouco que se conseguiu em três anos de ajustamento aumentou. A credibilidade, por exemplo. Não se confia num país velhaco e corrupto. Nem os “mercados”, nem os investidores, nem os governantes da Europa. Dir-se-á que a independência e a determinação (e coragem) de polícias e magistrados são um prenúncio de que o sistema judicial funciona, que, depois de limpar as contas, Portugal começa agora a purgar o sistema político e empresarial. É difícil acreditar nessa possibilidade.

A conjugação, em tão poucos dias, de tantos e tão confrangedores acontecimentos gera indignação e raiva. Já não se trata da mesma raiva suscitada pela austeridade. O sacrifício torna-se, apesar de tudo, mais tolerável quando se suspeita de que, ou não há alternativa, ou vale a pena sofrer agora para respirar de alívio mais tarde. Os portugueses exprimiram por diversas vezes esse estado de espírito nos últimos três anos e se o protesto foi, mesmo assim, uma lição de cidadania, é porque havia uma maioria capaz de vislumbrar e aceitar a crua realidade. Não se pode esperar o mesmo tipo de compreensão, ou de complacência, quando em causa estão suspeitas de comportamentos arrogantes, corruptos ou nepotistas por parte de personalidades políticas que mereceram a confiança de milhões de eleitores. Basta ler os posts nas redes sociais ou ouvir os fóruns nas rádios para se perceber que esta raiva é diferente. Contém a violência larvar que a injustiça e a ofensa lhe emprestam.

Com os laços de pertença a uma comunidade política a diluírem-se rapidamente, a oposição entre o “nós” cidadãos e “eles” políticos deixa de ser um fosso para se transformar num precipício intransponível. A fractura no regime está cada vez mais irreparável. Nota-se nas ruas, lê-se na imprensa. O discurso legalista e tolerante da democracia perde sentido e eficácia quando representantes e representados são extremos que se afastam. A contestação ao discurso populista que tende a ver em cada político um ladrão e em cada banqueiro uma ave de rapina fica difícil. A emoção toma conta do debate e torna-se a semente que ameaça gerar o populismo, a demagogia e, mais tarde, na melhor das hipóteses, um regime formalmente democrático, mas iliberal. Como o da Hungria.

Portugal, todos se congratulam, tem conseguido salvar o seu sistema partidário dos estilhaços da crise financeira e moral. As propostas de ruptura como a do Syriza na Grécia, de Beppe Grillo na Itália ou dessa tentação insana de importar o bolivarismo para a Europa dos espanhóis do Podemos são perigos distantes. Mas, bem se sabe, nas constelações partidárias tudo é volátil. Com Portas, Passos e Costa expostos à torrente de escândalos, o vazio tenderá a ser ocupado pelas forças que chegam das franjas do regime. A continuar assim, com tantos políticos autistas e imbecis, com as suspeitas de corrupção em polícias, com organismos de supervisão induzidos pelo regime a proteger as vigarices dos supervisionados, com iniciativas de desespero por dinheiro que contêm em si as larvas da corrupção, com um ex-primeiro-ministro detido por suspeita de corrupção, é uma questão de tempo até aparecer por aí um Sidónio disposto a acabar com a escandaleira. Ou um Salazar. O pântano anunciado por Guterres já nos dá pelo pescoço.
 

   





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