Inquérito ao BES: supervisores concordam numa coisa – falta-lhes coordenação

Carlos Tavares, da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários, e José Almaça, do Instituto de Seguros de Portugal, revelam que houve falhas em informação decisiva sobre o GES, que todos regulavam. Responsável: Carlos Costa e o Banco de Portugal.

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Carlos Tavares, presidente da CMVM, na comissão Miguel Manso

"Em todos esses momentos [ relacionados com o BES em 2014] pode ter havido informação privilegiada e abuso dela", revelou nesta terça-feira Carlos Tavares, perante os deputados na comissão de inquérito ao BES, adiantando que a CMVM levantou "cerca de 26 processos de contra-ordenação ao BES." E muitos destas acções referem-se a comercialização de produtos financeiros. Os crimes de mercado continuam a ser encarados "de forma benevolente", o que o leva a considerar que "é mais censurado alguém que rouba uma carteira do que alguém que manipula o mercado”.

Carlos Costa tinha revelado, nesta mesma comissão, que a 1 de Agosto, sexta-feira, antes de a CMVM ter suspendido as acções do BES, "muitos institucionais mais pequenos, convencidos de que a informação no mercado era boa", estiveram a comprar acções, enquanto "os grandes investidores as estavam a vender”. Por volta das 15h40 desse dia a CMVM suspendeu a cotação do banco, depois de Carlos Costa, às 15h12, ter telefonado a Carlos Tavares a avisar que "receava haver fuga de informação". Num segundo contacto, o governador "disse-me que iria haver desenvolvimentos no fim de semana, suspendemos a negociação". 

Inquirido em que momento a CMVM foi envolvida no processo de resolução do BES, Carlos Tavares esclareceu: "A CMVM não foi envolvida nesse processo. Não foi sequer consultada sobre a matéria". "Apenas fui informado oficialmente sobre as linhas gerais da solução no sábado à tarde, mas não fui consultado", relatou Tavares.

O presidente da CMVM reconheceu que se tivesse tido acesso a informação mais cedo, os accionistas – em especial os pequenos, que confiaram nas mensagens das autoridades – teriam sido protegidos. À pergunta sobre que entidade deveria ter avisado a CMVM da preparação do resgate ao BES disse: "Naturalmente, as entidades que conheciam" que o Fundo de Resolução (que implicou perdas totais para os accionistas e obrigacionistas juniores) ia ser accionado. Ou seja: o Ministério das Finanças, o Governo, o BdP e o BCE. 

Para compensar os prejuízos dos accionistas do BES, que perderam tudo com a solução de resgate, Tavares defende que a venda do Novo Banco contemple uma tranche, com direito de preferência, e condições mais generosas, para este segmento, que "de alguma forma corrija a injustiça, que já não pode ser corrigida". Para o presidente da CMVM "os accionistas do BES devem ser penalizados não por serem accionistas mas pelos seus actos no BES". 

Que autoridade, BdP ou outra, podia ter impedido o polémico aumento de capital de mil milhões de euros do BES realizado em Junho, dois meses antes de o banco falir com prejuízos de 3600 milhões de euros? "O BdP tem um papel importante, e exigiu – do meu ponto de vista bem – que o banco fosse capitalizado. É evidente que, se tivesse [o BdP] toda a informação que tem hoje, teria, certamente, actuado de forma diferente." 

Nesta audição, durante a tarde desta terça-feira, Carlos Tavares revelou um episódio ocorrido antes do último aumento de capital do BES. Nas vésperas da operação, chegou à CMVM uma carta da congénere do Luxemburgo a informar que tinha tido uma reunião "com gente" do GES (Grupo Espírito Santo) e a revelar factos graves. A autoridade luxemburguesa pedia à CMVM para esclarecer quando podia divulgar os factos. O encontro tinha sido com os auditores da KPMG que avaliaram as contas da ESFG (Espírito Santo Financial Group) a pedido do BdP. E as informações chegaram à CMVM na véspera do aumento de capital.

Na altura, a CMVM pediu ao BES que alterasse o prospecto de emissão do aumento de capital de Junho, incluindo todos os dados, e, para garantir a luz verde do regulador do mercado de capitais, o banco incluiu no prospecto da operação informação adicional de risco, mas "que não era verdadeira", pois não contemplava a exposição dos clientes do BES à ESI (Espirito Santo Internacional), que podia afectar a cotação do BES e da ESFG, nem as irregularidade detectadas pelos auditores. Na sequência, a CMVM avisou o banco que só aceitaria o prospecto (sem os factos omitidos) se a KPMG o validasse, mas a auditora recusou fazê-lo.

Carlos Tavares relatou ainda que o BES "criava nos clientes a expectativa legítima de que eram produtos com garantia de capital", embora muitos produtos tivessem risco e alguns não eram sequer alvo de contrato. "Alguns destes produtos levantavam dúvidas do ponto de vista comportamental e prudencial", lembrou.  

Outro momento relevante da Comissão de Inquérito decorreu, durante a manhã, quando o presidente do Instituto de Seguros de Portugal, José Almaça, confirmou perante os deputados dois factos: a avaliação da Tranquilidade, de 839 milhões de euros, atribuída pela PricewaterhouseCoopers, a pedido do GES, e aceite pelo BdP, estava inflacionada em mais 600 milhões; o BdP nunca procurou a autoridade de supervisão do sector segurador para confirmar se 839 milhões era o valor correcto. A Tranquilidade foi dada como colateral da provisão de 700 milhões constituída pela ESFG, que dominava o BES, para assegurar que o investimento dos clientes do banco em papel comercial (dívida) emitido pelas holdings do grupo (Rioforte e ESI), já na altura falidas, e que foi colocado aos balcões do BES, seria reembolsado.

Recorde-se que esta segunda-feira, Carlos Costa, na mesma Comissão de Inquérito,  justificou-se: “O BdP trabalha com auditores credíveis. Se em Março a PwC considera que 700 milhões é um valor conservador, o BdP tem de o considerar aceitável.”

Para José Almaça a Tranquilidade valeria “entre 200 e 250 milhões de euros”, mas a verba até poderia ser superior, da ordem dos 500 milhões se o BES não estivesse a contaminar a área seguradora. A seguradora foi vendida, já depois da intervenção estatal no BES, ao fundo norte-americano Apollo Global Management por 200 milhões. O presidente do ISP reconheceu que apenas soube a 28 de Julho, que a totalidade das acções da Tranquilidade, que supervisiona, estava dada (há vários meses) como penhor da provisão da ESFG. E defendeu que o BdP o deveria ter informado mais cedo: “Quando soube, manifestei a minha insatisfação pela minha falta de conhecimento.” O facto mereceu o comentário do BE: "Sistematicamente, os reguladores não falam." Fernando Negrão, que preside à comissão, fez um inédito comentário à parte: "Eles falam, não falam é uns com os outros." O PSD criticou Carlos Costa, observando que "o BdP violou um dos seus deveres de colaboração e de partilha de informação entres os supervisores." Almaça concordou: "Estou de acordo, deviam ter-me comunicado."

A 6 de Junho, o ISP, soube que a Tranquilidade tinha financiado a ESFG e outras sociedades do GES em 150 milhões de euros, operações que decorreram entre Abril e Maio: “Atendendo aos valores envolvidos eram susceptíveis de comprometerem as garantias financeiras da Tranquilidade e da T-Vida.” A seguradora adquiriu 10% do capital da ESAF, a gestora de fundos do GES.

Esta quarta-feira é a vez de a ministra das Finanças prestar esclarecimentos na Comissão de Inquérito à gestão do BES e do GES e comentar eventuais responsabilidades do Governo no desfecho do dossier que se traduziu no pior dos cenários: a falência do segundo maior banco privado e a intervenção estatal para evitar a sua liquidação.

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