O baixo preço da nossa dignidade

Os vistos gold são uma lei que se sabia, à partida, ter uma gigantesca probabilidade de atrair dinheiro sujo.

Os vistos gold são uma imoralidade. Às vezes é importante sublinhar os factos mais básicos, que nós tendemos a esquecer no meio das piruetas argumentativas. São uma imoralidade digna de país de Terceiro Mundo, onde certos princípios elementares são torpedeados porque é preciso ganhar a vida. Que essa iniciativa tenha nascido numa área partidária que se assume como democrata-cristã, eis a triste ironia de tudo isto. Paulo Portas precisa de estar mais atento às homilias de domingo.

A razão é óbvia: os vistos gold são uma escandalosa violação de um princípio de igualdade que deveria ser sagrado, tanto para cidadãos nacionais como para estrangeiros. Nenhum de nós admitiria que direitos fundamentais como a residência ou circulação estivessem dependentes do tamanho da nossa conta bancária. Isso seria uma clara inconstitucionalidade. Mas é isso que a Lei 29/2012 permite a cidadãos estrangeiros: comprar o direito a viver em Portugal e a passear pela Europa por 500 mil euros. Ainda por cima, vendemo-nos por pouco.

Pior: três curtos meses depois de a lei ter entrado em vigor, a 8 de Outubro de 2012, ela já estava em saldo. A 29 de Janeiro de 2013, os requisitos originais estavam a ser facilitados por despacho: a necessidade de criar postos de trabalho passou de 30 para 10, os investimentos imobiliários passaram a poder ser feitos em regime de co-propriedade, e a transferência de capitais passou a ser permitida através de quotas de empresas não cotadas em bolsa. Tudo devidamente alinhavado para facilitar negócios e diminuir a transparência dos processos.

Assim sendo, chamar aos vistos gold “Autorização de Residência para Actividade de Investimento em Portugal” é apenas um nome pomposo para um processo que pisca os dois olhos à lavagem de dinheiro e onde nunca houve verdadeira “actividade de investimento”. É por isso que não faz sentido pretender, neste caso, separar o domínio da justiça do domínio da política – pela simples razão de que esta é uma lei que se sabia, à partida, ter uma gigantesca probabilidade de atrair dinheiro sujo. Era obrigação de um legislador avisado precaver-se para que tal não acontecesse. Como está à vista de todos, não se precaveu.

Assim sendo, a comparação que o ministro Poiares Maduro usou para comentar este caso –  “se for detectada uma alegada corrupção na construção de um hospital, eu acho que ninguém vai sugerir que não devemos construir hospitais” – é um absurdo, e um absurdo indigno da sua, e da nossa, inteligência. A construção de um hospital é um bem cuja utilidade é reconhecida por todos e que serve a todos. Os vistos gold são um bem cuja utilidade é apenas reconhecida pelo Governo e que serve a muito poucos.

Não chega, portanto, a espantar que a Operação Labirinto tenha dado no que deu. É certo que a forma como a corrupção parece ter batido nos estratos mais elevados do funcionalismo público acaba por ser surpreendente, sobretudo devido à velocidade com que a rede se constituiu. Sem dúvida que isso é sintoma de uma preocupante cultura de facilidade e de uma rede de influências de dimensão assustadora. Mas estamos – e convém sublinhá-lo mais uma vez – a falar de uma lei que se punha a jeito de tantos esquemas, que ter acabado onde acabou é apenas a consequência natural da sua elaboração. Dizer que não há ilações políticas a tirar daqui, é apenas atirar mais areia para os nossos agastados olhos.

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