Fantasmas da guerra

Manuel Botelho continua a explorar a Guerra Colonial, desta vez através da convocação de figuras mudas e do diálogo com a escuridão da pintura

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Desaparecidas as armas, as cartas, os filmes, a Guerra Colonial Portuguesa é agora na obra de Manuel Botelho um pano de fumo esfumado e suficientemente ambíguo para significar outras guerras

Quem acompanha a trajectória de Manuel Botelho (Lisboa, 1950) saberá, certamente, que a Guerra Colonial Portuguesa (1961-1974) tem assombrado desde 2007, como um trauma indirecto (o artista não participou no conflito), as suas exposições e obras. Será menos um tema, um assunto, do que um conjunto de ecos, de reminiscências, de memórias que vêm impelindo o seu fazer, da pintura até à fotografia, passando pela instalação. Essa relação permite ao espectador descobrir uma prática que se confronta, intensa e teimosamente, com as imagens, com os signos desse acontecimento histórico. Basta recordar as séries Inventário e Ração de Combate (2008), Aerograma (2009) ou Madrinha de Guerra (2009): Manuel Botelho inscrevia a Guerra Colonial na arte portuguesa e, com esse gesto, representava as misérias e vilanias da guerra, bem como as formas que os homens encontravam de lhes resistir, de aplacar o seu mal. Em Confidencial/Desclassificado: Missa Campal, no Pavilhão Preto do Museu da Cidade, a Guerra Colonial portuguesa é agora um pano de fundo esfumado, enevoado. Foram-se as armas, as cartas, os registos fílmicos das mensagens de Natal dos soldados portugueses. A guerra tornou-se um fundo suficientemente ambíguo para significar outras guerras (o Vietname, a Síria, o Iraque) mesmo quando as imagens revelam um espaço e um tempo específicos. Mas há figuras que se destacam do fundo. Têm os braços decepados, mostram-se reverentes, modestas e mudas. São personagens bíblicas e religiosas, santinhos de cerâmica que Manuel Botelho foi adquirindo aqui e ali, para construir uma colecção; aquela a que recorreu para compor as fotografias expostas no Pavilhão Preto do Museu da Cidade.

Existem, portanto, duas imagens fotográficas. As da guerra colonial ou das ex-colónias nesse período (Angola, Guiné), que o artista transformou em fundos (a partir das fotos de um arquivo pessoal) e as fotografias desses fundos habitados pelas figurinhas, que correspondem às obras finais. De dimensões consideráveis, as fotografias remetem para a representação de cenas e temas religiosos, mas não ilustram episódios ou emoções, não são evocações académicas da história da pintura. Na verdade, o modo como Manuel Botelho compõe as cenas — num processo não muito diferente do que caracteriza os dioramas — impede uma leitura unívoca. As figurinhas parecem percorrer aqueles lugares ou simplesmente contemplam-nos. E partilham-nos com sombras, vultos, sinais de destruição, paisagens, edifícios. 

É deste encontro impossível e “artificial” que se produz a força das obras. Para lá da evocação de um teatro da guerra, elas devolvem ao espectador a fragilidade, a privação, o sofrimento dos indivíduos, estabelecendo um diálogo com a escuridão da pintura (esta é outro fantasma das obras). Há um risco assumido pelo artista ao usar as miniaturas: o de se aproximar perigosamente da fronteira com o kitsch. Vejam-se, por exemplo, a pequena Pietà de Miguel Ângelo ou a porcelana de S. Miguel Arcanjo. Mas o que interessa a Manuel Botelho é tornar essas representações menos patéticas, torná-las quase irreconhecíveis, outras imagens. A repetição de algumas figuras em fotografias distintas permite tal transfiguração, ao mesmo tempo que afasta a tentação de uma leitura sequencial. Não há narrativa, abatem-se/esbatem-se as referências religiosas, sobram os “gestos” e os “corpos” que o espectador vai reencontrando e nos quais se projecta, se revê ou não. Noutro plano estão as fotografias dos santinhos, que fitam suplicantes o espectador ou que, envolvidos com outras figuras numa cerimónia íntima, o evitam. Agora o fundo já não corresponde a paisagens, mas às cores desbotadas dos guiões militares da Guerra Colonial que o artista ampliou. A guerra regressa em segundo plano e, na projecção de um Cristo sepultado, que uma das salas parece velar, surge finalmente a morte. Ou a arte como forma de lhe fazer frente.

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