1989, o annus mirabilis do fim do império soviético

Tal como a Revolução Francesa, a cadeia de revoluções de 1989 não foi prevista por ninguém. Foi um “evento mundial”, cujos efeitos ainda hoje se sentem. Liquidou o império soviético, abriu as portas à globalização e à criação do euro.

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Os guardas derrubaram o muro de modo a abrir uma passagem entre o Leste e o Ocidente GERARD MALIE/AFP
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Gorbatchov cumprimenta o líder comunista Erich Honecker em 1986 REUTERS
Gorbatchov com a chanceler Angela Merkel em 2011
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Gorbatchov com a chanceler Angela Merkel em 2011 JESCO DENZEL/AFP

Quem, com menos de 45 anos, tem hoje memória pessoal dos regimes comunistas, da Europa dividida, da “Cortina de Ferro” ou do “equilíbrio do terror”? Esse mundo desapareceu com as revoluções de 1989, o fim da Guerra Fria e o desmoronamento do império soviético. Foi um “evento mundial” cujas ondas de choque se fizeram sentir em todos os continentes. Apagou a ordem herdada da II Guerra Mundial. E os efeitos prolongam-se, sob novas formas, até aos nossos dias. O 9 de Novembro, data da queda do Muro de Berlim, ficou como seu símbolo.

O historiador britânico Victor Sebestyen escreveu nas comemorações de 2009: “Hoje é o verdadeiro 9/11. Isto não significa um jogo com datas. Os futuros historiadores lembrarão o 9 de Novembro de 1989 como muito mais significativo do que aquele terrífico dia de Setembro há oito anos atrás.” Naquele dia, o comunismo morreu. Há, no entanto, um laço entre 9 de Novembro e 11 de Setembro: “O fim da Guerra Fria abriu a porta a Osama Bin Laden.”

Abriu também a porta à globalização e a uma nova Europa. Fechou o ciclo comunista e reabriu “a questão alemã”. Foi a reunificação alemã que impôs a criação do euro.

O pós-totalitarismo
O colapso do comunismo apanhou os sovietólogos de surpresa. Mais rápida foi Margaret Thatcher, que, quando conheceu Gorby, em 1984, antes de ele assumir o poder, disse: “I like Mr. Gorbatchov. We can do business together.” Não era igual aos outros dirigentes soviéticos.

De facto, 1989 não estava inscrito nos astros. Foi imprevisível e poderia ter tomado muitos outros rumos. O fim do império soviético não passava sequer pela cabeça dos dirigentes americanos, que aconselhavam prudência. Mas também há “muros de pensamento” que impedem pensar uma situação nova.

A grande pergunta era: “É o comunismo reformável?” A sovietologia era dominada por duas escolas antagónicas. Os “revisionistas” viam sinais de transformação no sistema e uma sociedade civil embrionária. Mas eram “desmentidos pelos acontecimentos” — da invasão da Checoslováquia, em 1968, ao ”estado de sítio” e ilegalização do Solidariedade na Polónia, em 1981.

Para a escola do totalitarismo — inspirada na natureza do nazismo e do estalinismo — o sistema soviético era imutável. Só um cataclismo o poderia destruir. “O combate entre os dois sistemas [capitalismo e socialismo] prolongar-se-ia por décadas, senão séculos, e não se poderia estar seguro quanto ao seu desfecho”, resumiu o historiador Walter Laqueur.

Mais lúcidos foram alguns dissidentes do Leste. Para o checo Vaclav Havel ou para o polaco Adam Michnik, nos anos 1960 os regimes comunistas deixaram de ser totalitários e de assentar na mobilização ideológica e no terror de massa. Havel falou em “pós-totalitarismo” e Michnik em “totalitarismo de dentes partidos”. Nos anos 70 e 80, os regimes comunistas contentam-se com a “submissão popular e a repressão selectiva”. Já não fuzilam: prendem ou exilam os dissidentes. Procuram desmoralizar os indivíduos e retirar-lhes qualquer esperança de mudança. A “inércia do medo”, herdada do estalinismo, fazia o resto.

O império soviético não caiu por fatalidade. Os regimes despóticos, mesmo em crise, podem sobreviver décadas — e nisto os sovietólogos tinham razão. O primeiro elo da longa cadeia que vai fazer implodir o comunismo foi um acidente histórico: o “factor Gorbatchov”. Ele propôs-se modernizar a economia e arrancar a Rússia ao declínio. Pensava que a reforma económica não se podia realizar sem abertura política.

1989 é também o ano de Tiananmen. Os chineses estudavam o que se passava na URSS. Deng Xiaoping fez a escolha oposta: uma marcha controlada para o capitalismo sob um regime político autoritário.

Gorbatchov perdeu a sua aposta naquilo que, na época, era considerado possível — a reforma económica e a travagem do declínio da União Soviética. E teve uma vitória, para lá de todas as expectativas, no campo do “impossível” — a democratização e a liberdade.

Ele agiu sempre com atraso perante o real, contornando as resistências do Partido Comunista da União Soviética (PCUS). Mas a sequência dos golpes “lesa-partido” é eloquente: libertação dos dissidentes, liberdade de expressão, eleições livres, direito à greve, separação entre partido e Estado, esboço de um Estado de direito, culminando em 1990 na abolição do papel dirigente do PCUS. Terá sido um “aprendiz de feiticeiro”, cometeu muitos erros, mas realizou uma obra de arte: fez passar à História o comunismo e a Guerra Fria.

Começa a vertigem
A Polónia e a Hungria são os laboratórios de 1989. O curioso é que se trata de situações diametralmente opostas. Na Polónia, há uma oposição forte e um partido fraco. Na Hungria, há um partido forte e uma oposição fraca.

No dia 6 de Fevereiro começam as negociações entre o Governo polaco e o Solidariedade — a Mesa Redonda. As greves maciças de 1988, exigindo a legalização do Solidariedade, convenceram o general Jaruzelski da necessidade de partilhar o poder com o sindicato-partido de Lech Walesa.

O Partido Comunista (POUP) estava desde a greve de Gdansk em 1980 sob tutela militar — Jaruzelski, comandante do Exército, torna-se Presidente e secretário-geral do partido, tendo como único apoio as tropas soviéticas estacionadas na Polónia. A novidade radical do Solidariedade, desde 1980, é ter representado um “renascimento da sociedade civil”. E tinha do seu lado a força da Igreja e a figura de João Paulo II.

Adoptou um princípio que lhe dava uma vantagem estratégica: “A vós o poder, a nós a sociedade.” A Espanha serviu de modelo para a saída pacífica do comunismo. Combina um extremo realismo na avaliação da relação de forças com uma inesgotável imaginação. “Pode imaginar-se tudo, menos ir a Marte de bicicleta”, dizia Michnik.

Assim, aceitou um compromisso: apenas concorreria a 35 lugares no Parlamento, mas a todos no Senado. No dia 4 de Junho tem uma vitória esmagadora: os 35 deputados e todos os senadores menos um. O católico Tadeusz Mazowiecki torna-se no primeiro democrata chefe de um governo na Europa de Leste. Walesa será eleito Presidente em 1990.

Na Hungria, a iniciativa cabe aos reformadores do Partido Comunista (PSOH). O ponto de partida é a nomeação do tecnocrata Miklos Nemeth para a chefia do governo, em 1988. A análise da Perestroika leva os reformadores, liderados por Imre Pozsgay, a elaborar um plano de democratização controlada. Em Janeiro, o PSHO aprova o multipartidarismo. A 3 de Maio, aproveitando a vitória do Solidariedade na Polónia, a Hungria “rasga a Cortina de Ferro”, arrancando o arame farpado electrificado da fronteira. Será a “brecha” que desencadeará em Agosto o grande êxodo dos “turistas” da RDA.

O PSHO convoca uma mesa redonda com a oposição, que só então entra em cena. Em Outubro, o PSHO dissolve-se e funda o Partido Socialista — que servirá de inspiração aos comunistas italianos. Pela nova Constituição, a Hungria deixa de ser uma “república popular”. São marcadas eleições livres para 1990.

A preocupação dos dirigentes húngaros era o que diriam os soviéticos. Passavam noites à espera de reacções. Gorbatchov nada dizia. Os think tanks de Moscovo faziam cenários: “Como reformar o Leste europeu sem o perder?” Mas as situações mudavam demasiado depressa. Gorbatchov não tencionava presidir ao fim do império, mas os seus “silêncios” contribuíram para que os povos se assumissem como actores da História.

A queda dos dominós
A Perestroika russa encorajou os polacos. Estes fizeram acelerar a Hungria. Esta ajudará a dissolver a RDA. A queda do Muro de Berlim arrastará a Checoslováquia, a Bulgária e a Roménia. A agitação atinge a RDA em Outubro. O líder comunista, Erich Honecker, demite-se a 18, depois de Gorbatchov o ter humilhado. A 4 de Novembro, há grandes manifestações em Berlim Leste, Leipzig e outras cidades. Na noite de 9, o Muro de Berlim, o símbolo da divisão da Europa, começa a ser escalado por centenas de pessoas. Em três dias dois milhões de alemães orientais visitam Berlim Ocidental. Gritam um slogan: “Nós somos um povo.” Era o prenúncio da reunificação.

Após a invasão soviética de 1968, a Checoslováquia tornou-se num dos mais repressivos regimes do Leste. Com a queda do Muro de Berlim — e perante a complacência de Moscovo — tudo muda em dez dias. No dia 20 de Novembro, 300 mil pessoas manifestam-se em Praga. O secretário-geral do partido, Milos Jakes, demite-se. Greve geral a 27. A oposição, animada por Vaclav Havel, organiza-se à pressa no Fórum Cívico e propõe negociações ao Governo. Também à pressa, o Parlamento revê a Constituição e elege um governo de maioria não comunista. No dia 29 de Dezembro, Havel é eleito Presidente.

Na Bulgária, a 11 de Dezembro, um golpe palaciano derruba o líder comunista, Todor Jivkov. Na Roménia, o país mais autónomo do Pacto de Varsóvia mas dominado por um regime paranóico, é o apocalipse. Corre sangue. O Presidente, Nicolae Ceausescu, é fuzilado, com a mulher, no dia de Natal.

O politólogo Jacques Rupnik, antigo conselheiro de Havel, não sabe resolver o “enigma da queda do comunismo”. Prefere usar uma metáfora. “Somos tentados a comparar a reacção em cadeia que varreu o império soviético em 1989 a um ‘efeito borboleta’. A pequena agitação das asas da borboleta (as negociações da Mesa Redonda seguidas pela eleições polacas) desencadeou uma fractura que fez estalar os muros e desestabilizou a antiga ordem.”

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