Milhares de catalães telefonam a “milhões” na maratona do 9-N

A generalitat da Catalunha não se desvinculou da consulta de domingo sobre a independência mas quem a vai tornar possível são muitos voluntários, animados por duas associações. Alguns passaram os últimos dias ao telefone.

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Francesc Homs, conselheiro da presidência catalã e porta-voz da Generalitat, também telefonou Enric Vive-Rubio

Ainda não eram 9h e já havia uma pequena fila à porta do rés-do-chão do edifício sede da Omnium Cultural, no bairro residencial do Eixample em Barcelona, a dois quarteirões do Passeig de Gràcia. Gema, administrativa de 51 anos, Alex, que trabalha em marketing e tem 37 anos, Josefina, professora reformada de 69, são algumas das pessoas a ocupar o largo hall. Ao peito levam um pin onde se lê Ara És L’Hora e na mão as duas páginas de instruções para uma maratona de telefonemas que começou na quarta-feira mas só termina sábado.

O objectivo da campanha Ara És L’Hora, que reúne a Assembleia Nacional Catalã (ANC) e a Omnium, era ter “100 mil pessoas a telefonar a milhões” de catalães para apelar à participação na consulta de amanhã sobre a independência, explicando-lhes que podem votar e como e onde o fazer, caso não o saibam e queiram participar. A grande sala da Omnium transformada num call center com uns 60 lugares abriu as portas às 9h de quarta e nunca mais fechou, mas a ideia era que muitas mais pessoas telefonassem a amigos e conhecidos a partir das suas próprias casas.

Na primeira manhã, para além de pessoas como Gema, Alex e Josefina, estiveram políticos, actores, realizadores de cinema, músicos ou escritores. Cada cara conhecida que entrava era imediatamente rodeada por jornalistas, o que fez atrasar um bocadinho o arranque da maratona.

David Fernàndez, líder da CUP (Candidaturas de Unidade Popular), o partido de esquerda com implantação municipal que concorreu pela primeira vez ao parlamento autonómico em 2012 e elegeu três deputados, mal pode respirar, tantas câmaras e microfones tem à sua volta e a maratona ainda nem começou. “Responde a umas perguntas para todos”, pede-lhe uma jornalista da Rádio Catalunha. “Mostra a T-shirt”, grita um de uma televisão. A T-shirt azul escura de David tem uma espécie de botija de gás com orelhas ao lado da frase Vull (quero) Butà, um trocadilho com as botijas (conhecidas como butas, de butano), e o votà de votar.

“Estou aqui como qualquer pessoa, sou um voluntário, quero apelar à participação cidadã. Contra a decisão do Tribunal Constitucional de suspender a democracia nós lutamos pela normalidade”, diz David, já sem conseguir travar as gotas de transpiração.

A pedido do Governo de Madrid, do Partido Popular, de Mariano Rajoy, o Constitucional suspendeu a consulta marcada pelo governo autonómico ainda no fim de Setembro. O executivo liderado por Artus Mas, da CiU (Convergência e União), anunciou então que a 9 de Novembro aconteceria um “processo de participação cidadã”, mas esta semana o Constitucional também suspendeu este novo processo, declarando que a generalitat não pode ter qualquer participação no que afinal não será mais do que uma grande sondagem com urnas.

David está na última cadeira de uma das filas do meio. Na fila da frente, bem ao centro, Màrius Serra, escritor e linguista, muito conhecido pela defesa da “imersão”, o método usado das escolas da Catalunha onde todas as disciplinas são ensinadas em catalão menos o castelhano, senta-se ao lado de Manel Barceló, actor, dramaturgo e guionista, o médico de Vicky Cristina Barcelona, o filme rodado por Woody Allen na cidade.

Màrius defende que “este é um processo absolutamente movido por cidadãos e que requere uma comunicação de pessoa a pessoa”. Como cidadão, não só se disponibilizou para telefonar a tantos catalães quantos consiga como se voluntariou para ser presidente de uma das mesas de voto. “Isto representa a aspiração de muitas pessoas na Catalunha. Estou totalmente de acordo com o processo soberanista”, afirma Manel, que só não vai passar o tempo todo a telefonar às pessoas porque ainda se ofereceu para ir a um debate na cidade de Mataró e hoje trabalha. “Domingo, felizmente, estou livre e posso votar”.

Um enorme silêncio
Entretanto, o líder da CUP já não é o único político na sala. Chegou antes de Alfred Bosh, escritor e deputado da Esquerda Republicana da Catalunha (ERC) no Congresso de Madrid, foi porta-voz da plataforma Barcelona Decide, que organizou uma consulta simbólica sobre a independência na capital catalã, em 2011, e será candidato a presidir à autarquia nas eleições do próximo ano. Alfred aproveita os últimos momentos antes da maratona para reler as instruções e experimentar o sistema que permite a cada um inserir os dados da pessoa que atender o telefone e encontrar a sua mesa de voto no portátil que têm diante de si. “Carregas aqui”, diz-lhe o companheiro do lado, Eduardo Reyes, catalão que nasceu andaluz de Córdoba e é líder do Súmate, uma associação que integra catalães de língua e de cultura espanhola.

As 9h já passaram há um bocadinho e Oriol Soler, director da campanha Ara És L’Hora, quer pôr os telefones dos catalães a tocarem. “Bom dia a todos. Estamos diante de um momento histórico e único. Para que seja um sucesso temos de nos envolver todos. Se cada um, em sua casa, fizer dez chamadas e animar amigos e familiares a fazer o mesmo não podemos falhar. Até sábado vamos fazer milhões de chamadas. Agora mesmo começa a maratona”, diz entre aplausos.

Depois de tanto reboliço, seguem-se uns longos minutos de silêncio total. Ou ninguém está a conseguir usar bem o sistema, que escolhe números ao acaso, a partir das páginas amarelas, ou ninguém está a atender do lado de lá. Os voluntários começam a espalhar-se pela sala e a tentar perceber se está tudo bem. De repente, ouvem-se os primeiros bons-dias. Afinal, foi mesmo azar. O sistema funciona, só que por momentos ninguém atendia. “Quando ouvirem música, não desliguem. Há muitos toques que têm música”, explica passado um pouco uma das voluntárias.

O direito a votar
“Olá, bom dia, chamo-me Alex e estou a telefonar porque sou voluntário do 9-N. Está a pensar ir votar? […] E sabe onde ir? […] Muito bem, é muito simples. De onde é? [...] Humm, Canaglada, isso é um bairro? […] Ah, ok, Terrassa, conheço muito bem, já vivi aí. […] Agora precisava do seu apelido. […] Então basta a primeira letra… L, ok. Muito bem, vai votar no Instituto de Investigação la Plancha.” A chamada de Alex está a correr bem. Nem todas são assim. Há muita gente que diz já estar informada, muitos que nem querem saber e desligam o telefone assim que percebem do que se trata.

“A senhora pode votar, vote ‘não’ ou vote ‘sim’. Estão a dizer-nos todos os dias que não podemos, mas não é verdade. Peço-lhe que vote. Adeus, tenha um bom dia”, despede-se.

Para Alex, o objectivo desta maratona é mesmo chegar a pessoas como esta que acabou de atender. “Era uma senhora mais velha, nem queria dar o apelido. Mas quer votar e agora já sabe onde o fazer. São estas pessoas que não vão à Internet, onde está a informação toda”, diz, explicando que pode estar ali por trabalhar por conta própria. “Há três anos que faço o que posso pelo movimento independentista”, acrescenta. Sem fazer parte de nenhuma organização, sublinha: “Não gosto de estar casado com partidos nem associações”.

Gema veio por estar “indignada” e sentir que precisa “de fazer alguma coisa”. “Somos catalães”, diz Josefina, “e não nos querem deixar ser”. “No meu cartão de identidade diz que sou espanhola, mas eu sou catalã, nem espanhola nem francesa”, insiste Gema. As duas explicam que vieram porque muita gente pode estar indecisa, confusa com as decisões judiciais e sem saber se pode ou não votar. “Eu não tenho nada contra os espanhóis”, acrescenta Gema. “Tenho amigos andaluzes que amo. Eu estou é contra este governo espanhol.”

Homs e as presidentes
Já passa das 11h e ainda não há membros da CiU na sala. Nem chegaram “as presidentes”, Carme Forcadell, ex-autarca da ERC e líder da ANC, a associação que nos últimos anos tem organizado as manifestações do dia da Catalunha (a Diada, a 11 de Setembro), e Muriel Casals, professora de Economia e História Económica e presidente da Omnium, uma associação privada que nasceu durante o franquismo, da união do mundo da cultura à burguesia industrial. Nos últimos anos, ANC e Omnium, que inicialmente se ocupava da defesa e promoção da língua catalã, tornaram-se no motor desta vaga independentista e estas duas mulheres o rosto da consulta de domingo, tanto ou mais que Artur Mas, o presidente do governo catalão.

São quase 11h30 e surgem na sala Casals, Forcadell e Francesc Homs, ministro da presidência e porta-voz da generalitat. “Ele chegou sozinho”, explica-nos a assessora do ministro. “E está aqui enquanto membro do partido, da Convergência, não como conselheiro.” Homs chegou sozinho, mas Forcadell e Casals terão esperado por ele para entrar na sala. Afinal, esta foi a semana em que as associações tiveram de insistir que a responsabilidade da consulta não podia ser só delas, a generalitat tinha de permanecer envolvida.

Ao contrário da maioria dos presentes, o porta-voz de Artur Mas apresenta-se só como Francesc a cada telefonema. Primeiro, ninguém lhe atende. Depois, responde alguém que já sabe tudo. Também lhe acontece atender-lhe quem não queria saber e quem o faça passar do catalão para o castelhano, algo comum aos outros voluntários. Muriel e Carme sentam-se lado a lado noutra ponta da sala e demora até que alguém lhes atenda o telefone.

“Tudo está pronto, no domingo vota-se”, diz ao PÚBLICO Muriel. “Só falta as pessoas irem votar.” Carme fala do “esforço titânico de dezenas de milhares de voluntários, numa organização que o governo devia ter feito e não a sociedade civil”. E o que é “uma vitória no domingo”, perguntamos a Carme. “Que as pessoas possam votar. Depois de tudo o que fizeram para nos impedir de o fazer, essa é a grande vitória.”

 

 

 

 

  

  

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