O Dia Seguinte

Em Novembro de 1989, o PÚBLICO já existia mas ainda não estava nas bancas. O jornal fazia-se todos os dias, mas em regime de teste, com a produção de “números zero”. O texto que aqui publicamos foi paginado no Público Magazine, do dia 19. A revista foi impressa, mas só foi distribuída num evento promocional. Vinte e cinco anos depois, aqui fica um “quase inédito”, um olhar sobre Berlim, dias depois da queda do Muro.

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Do alto da coluna da Vitória, o anjo Damiel de As Asas do Desejo (Wim Wenders, 1987) contemplou Berlim DR

Era uma ilha cercada de um muro por todos os lados. Numa noite, as barreiras cederam e descobriu-se de novo, a grande cidade, a metrópole da Europa Central. Mas a euforia não dissipa a melancolia pela inutilidade de décadas de História absurda.

A recta é longa, até à linha do horizonte. Ao longo do trajecto, os nomes vão mudando: Kaiserdamm, Bismarck Strasse, Strasse des Stern, Unter der Linden. A certa altura, os imóveis dão lugar ao arvoredo do Tiergarten, o parque central. E é lá, no meio do parque, numa praça, que por uma vez é necessário o movimento curvo, para contornar uma coluna, dita da Vitória, sobre a qual se ergue uma figura alada.

As asas; devem ter sido as asas da figura, semelhantes às suas, que atraíram Damiel a esse local. Era um anjo, com outro, Cassiel, descido à terra. Do alto da coluna, Damiel contemplou Berlim. Na cidade, encontrou outros anjos, mas também o que desconhecia: o amor humano, a experiência do transitório. Cassiel partiu, mas Damiel ficou. Apaixonado, um anjo caiu em Berlim, ou assim o narraram Peter Handke e Wim Wenders em O Céu Sobre Berlim/As Asas do Desejo.

Damiel ficou para viver o transitório, mas também aquela estranha sensação de imobilidade, de condenação, que é característica de Berlim. Tal como o narrador de O Saltador do Muro, de Peter Schneider, Damiel poderia concluir um relato seu falando da cidade lá fora e dos muros fronteiriços: "Esses muros ainda estarão de pé quando já não existir ninguém para os atravessar."

Quando anjo, Damiel poderia ter continuado, pela recta fora, o seu sobrevoo da cidade; quando desceu à condição humana e transitória, soube que, a meio da recta, estava o muro, ali no fim do parque, antes da Porta de Brandenburgo; que para lá do muro, era Unter der Linden, mas era também uma cidade que, sendo a mesma, era outra, a cidade oriental; que o continente era o mesmo, mas também outro; que o mundo mudava a meio da recta, ali onde se erguia o muro.

Berlim era assim, a cidade dividida, o grande palco da História, cenografia concreta de uma Europa e de um mundo divididos. O muro era a última fronteira, diferença irreparável entre os que estavam do "lado de cá" e do "lado de lá".

Para os políticos, as fronteiras são sempre úteis: definem a soberania territorial e o limiar para além do qual estão "os outros", os inimigos. Para os políticos, essa linha divisória que atravessa Berlim foi a grande metáfora, antes de ser a fronteira intransponível. Num dia de Março de 1946, Churchill falou pela primeira vez da Cortina de Ferro, que se erguia entre aqueles que, poucos meses antes, eram ainda aliados. Quinze anos volvidos, os dirigentes alemães-orientais acharam que não bastava o arame farpado que, entre o Báltico e o Adriático, dividia a Europa e ergueram o muro. Em 1963, Kennedy proclamava: "Ich bin ein berliner", declaração que, um após outro, todos os políticos ocidentais retomaram ritualmente. Mas "ser um berlinense" o que é?

Do muro, conhecemos as imagens, junto à Porta de Brandenburgo, na grande e deserta Postdamer Platz, ou mesmo, um pouco mais a sul, no mais depressivo bairro de Berlim, Kreuzberg, lá onde na barreira está escrito: "No mercy, no future." Mas o muro não são só essas imagens emblemáticas.

Poderíamos partir do centro, para norte. Depara-se-nos um aviso: "You are leaving the british sector - Vous entrez dons le secteur français." Berlim é uma cidade ocupada, por soviéticos de um lado, por franceses, britânicos e americanos do outro; esse é ainda o seu estatuto formal, ilha ancorada no meio do território da RDA. Continuemos para norte, iniciemos depois a inflexão para sudoeste, passemos ao lado de Spandau e sempre, sempre, o muro prossegue. Aproximemo-nos de Wannsee, onde os berlinenses se dirigem ao fim de semana, buscando a calma do lago e da floresta que o rodeia; do lado de lá, depois das árvores, está o arame farpado e o muro. Passado o extremo, a Ponte de Glienicke, onde durante décadas as potências ocupantes fizeram as suas trocas de espiões e prisioneiros, viramos para leste; prosseguimos pelo sector americano, até virar para norte e chegar de novo a Kreuzberg, à Potsdamer Platz, à Porta de Brandenburgo. Foi um périplo de 160 quilómetros e sempre, sempre, lá estava o muro.

Uma ilha, Berlim? Laputa — chamou-lhe Helma Sanders-Brahms, num filme cujo título retomava o nome da ilha voadora a que Gulliver aportava numa das suas viagens. Mas uma ilha por todos os lados cercada de muro, em que as paranóias da História, a ameaça do colapso nunca deixavam de estar presentes. Uma cidade dividida? O espaço onde se sente, de forma indesmentível, todo um mundo dividido.

Constrangente, o muro fixa os limites à superfície, mas as fronteiras erguem-se mesmo onde são invisíveis. Elas estão lá, nesse Céu Sobre Berlim do filme de Wenders, esse Céu Dividido que é título de um romance de Christa Wolf ("na cidade, as pessoas, há muito habituadas a este céu enevoado, acharam-no de repente muito difícil de suportar"). Elas estão lá, sob a terra, nas linhas do metro. Esqueçamos, como se fosse possível, as barreiras entre Leste e Oeste, e pensemos apenas numa pequena deslocação na cidade, talvez de sul para norte, apanhando a Linha 8. Depois de Moritzplatz, apenas se volta a parar em Voltastrasse; pelo meio, passámos por estações fantasmas como a de Alexanderplatz, um dos centros nevrálgicos da antiga Berlim, objecto do romance de Alfred Doeblin, reconstruído em estúdio para a série televisiva de Rainer Werner Fassbinder; por baixo da terra, fechados num comboio, passámos pelo "outro lado", outra cidade, outro país, que nos disseram ser também, por imposição real da política, "outro mundo".

Para um estrangeiro (que não para um berlinense ou um alemão-ocidental), era mesmo possível dispensar Check-Point-Charlie, ou qualquer outro ponto de passagem terrestre, e ir de metro para o lado de lá. Bastava sair na estação de Friedrichstrasse e descobrir que, entre o metro e a superfície, lá estava a fronteira; ao fim da tarde, velhos alemães-orientais, carregados como emigrantes portugueses chegando em Paris à Gare de Austerlitz, cheios das compras de um dia em que tinham tido licença para vir ao Oeste, saíam dos comboios, voltando para casa, passando a fronteira.

Berlim era assim, cidade-fronteira sofregamente vivida na incerteza permanente, na ameaça latente de um conflito mundial que, de imediato, atingiria a cidade: cada dia, cada noite, podiam ser os últimos das nossas vidas. Até ao dia em que "as pessoas, há muito habituadas a este céu enevoado, acharam-no de repente muito difícil de suportar", o dia em que saltaram esses muros, feitos para ainda estarem de pé "quando já não existir ninguém para os atravessar". Numa noite, ali onde estava escrito "no mercy, no future", descobriu-se que o dia seguinte ia existir, que era possível imaginá-lo, sem temer que talvez ele nunca chegasse.

"Não saber orientar-se numa cidade não é muito importante, mas perder-se nela, como numa floresta, exige uma aprendizagem"; assim começa um dos mais belos textos escritos sobre uma cidade, Infância Berlinense, de Walter Benjamin. Com a redescoberta da existência do dia seguinte, pode aprender-se de novo a andar, a perder-se na grande cidade. As fronteiras ainda existem, mas os limites cederam, o movimento é possível, eufórico, mas também melancólico. Essa melancolia, que percorre toda a obra de Walter Benjamin (que se suicidou, fugindo do nazismo que ia destruir Berlim, a Alemanha e a Europa), sentimo-la também neste presente que redescobre o futuro, mas não pode esquecer o passado. "E agora que o grande dia chegou, a minha alegria é infinitamente triste. Evidentemente, o meu coração está cheio de alegria, mas não posso também conter as lágrimas. Lágrimas de alegria, porque tudo foi tão simples e rápido. Lágrimas de cólera, porque demorou tanto tempo. Subitamente, tudo está bem para mim, mas isso custou demasiados anos da minha vida" — palavras de Wolf Biermann, um dos muitos que tinham sido obrigados a deixar a RDA. Numa noite, um dos grandes absurdos da História cedeu, como se os 44 anos do pós-guerra, ou os 28 anos do muro, tivessem sido o parênteses terrível em que se consumiram vidas e Berlim, e a Europa, depararam impotentes com o seu hiato.

O melancólico reencontro em Berlim, e ao longo de toda a antiga Cortina de Ferro, ontem na Polónia e na Hungria, talvez amanhã na Checoslováquia, com uma Europa que, redescobrindo a sua zona central, o seu meio (a Mitteleuropa), deixa de ser espaço de divisão, para retomar o que tem enquanto comunidade e enquanto diversidade, esse reencontro, tem algo de anacrónico. Estava escrito, e quem o escreveu foi o autor que, mais que qualquer outro, nos tinha vindo a alertar para a perda dessa Europa Central, que parecendo distante, é cultural e politicamente, parte inalienável deste difuso sentimento europeu. Estava escrito por Milan Kundera: "As revoltas centro-europeias têm qualquer coisa de conservador, diria mesmo de anacrónico; elas tentam desesperadamente restaurar o tempo passado, o tempo passado da cultura, o tempo passado dos tempos modernos, porque apenas nessa época, somente no mundo que guarde uma dimensão cultural, a Europa Central pode ainda defender a sua identidade, pode ainda ser percebido tal como é."

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