Há 25 anos

Hoje tudo está a mudar de novo. Mas nada mudou tanto a Europa da segunda metade do século XX como esse ano maravilhoso de 1989, em que a queda do Muro, a 9 de Novembro, ficou retida na memória de todos como o acontecimento central e simbólico.

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A queda do muro foi um dos principais prenúncios do colapso da União Soviética, dois anos depois WOLFGANG RATTAY/REUTERS
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O primeiro acontecimento daqueles meses vertiginosos foi a visita de Estado de Mikhail Gorbachev à República Federal Alemã, em Junho de 1989. Eu era, à altura, estudante de doutoramento na Universidade Ludwig-Maximilian, em Munique.

Antes dos encontros bilaterais com Kohl, em Bona, Gorbachev tinha tido uma recepção extremamente calorosa na região operária do Ruhr. Para meu grande espanto, vi nas notícias da televisão o dirigente do sindicato dos metalúrgicos, IG Metall, saudá-lo como "chefe da classe operária da União Soviética", perante uma assistência composta por quadros sindicais e dirigentes da social-democracia alemã, entre os quais o antigo chanceler Helmut Schmidt, também ele envergando o capacete de metalúrgico. Só uma semana mais tarde compreendi o significado político daquela coreografia obreirista, quando o embaixador americano em Bona, o general Vernon Walters, veio afirmar publicamente que os Estados Unidos não se opunham à reunificação da Alemanha.

No final desse mês de Junho, Erich Honecker encontra-se com Gorbachev em Moscovo. Em 17 de Agosto, cerca de 700 cidadãos da RDA fogem para a Áustria, via Hungria. A 11 de Setembro, a Hungria abre a fronteira com a Áustria para os cidadãos da Alemanha de Leste. A 12 de Setembro, é fundado o Neues Forum, o maior grupo de oposição da Alemanha de Leste. A 2 de Outubro, as primeiras manifestações em Leipzig. A 7 de Outubro, Mikhail Gorbachev visita Berlim-Leste, por ocasião da celebração do 40.º aniversário da RDA. Evidencia o seu distanciamento em relação a Honecker, ao mesmo tempo que é acarinhado pela população. No dia 9 de Outubro, têm lugar as grandes manifestações em Leipzig, tendo o regime decidido não usar a força para as reprimir. A 18 de Outubro, Honecker demite-se e Egon Krenz assume as funções de Secretário-Geral do Partido. Krenz visita Gorbachev em Moscovo em 1 de Novembro. A 9 de Novembro, as declarações do porta-voz do Partido, Günter Schabowski, anunciando um novo procedimento sobre a concessão de vistos, são interpretadas, equivocadamente, pela população de Berlim-Leste como significando a abertura do Muro. A população aflui maciçamente à zona do Muro e este começa a ser desmantelado. A 28 de Novembro, Kohl apresenta no Parlamento de Bona o seu plano de dez pontos para a unidade alemã. Em 2 e 3 de Dezembro, Bush e Gorbachev encontram-se em Malta. A 3 de Dezembro, Egon Krenz, o Politburo e o Comité Central demitem-se.

Segui avidamente pela televisão e pelos jornais o processo de negociação diplomática 2+4, que preparou a reunificação alemã e o desenho daquilo que se chamou à altura "a nova arquitectura de segurança europeia". Como era bolseiro da Fundação Ebert, tive então o privilégio de receber, conjuntamente com um pequeno grupo de outros jovens bolseiros, lições sobre a política europeia de Willy Brandt e Egon Bahr. Na social-democracia alemã não havia unanimidade de pontos de vista: Oskar Lafontaine defendia uma Confederação entre as duas Alemanhas, enquanto Brandt e Schmidt coincidiam com Kohl no objectivo da reunificação alemã. Brandt avisou-nos da imensa catástrofe humana que a desintegração da Jugoslávia iria provocar.

No final desse "ano dos milagre", como se dizia na altura, em que se redesenhou o mapa europeu, dei também um salto a Varsóvia e a Budapeste. Em Dezembro, Mário Soares convidou-me para o acompanhar à tomada de posse de Vaclav Havel, o novo Presidente da Checoslováquia. No dia seguinte à posse, Havel apareceu para almoçar na Embaixada de Portugal, com um impermeável verde e de cachecol. Era o anti-poder: um intelectual de causas que as circunstâncias tinham conduzido à Presidência da República. O contrário de Dubceck, que Soares recebera na véspera no hotel onde estava hospedado: era agora guarda-florestal, depois da queda em desgraça subsequente ao esmagamento da Primavera de Praga e a uma breve passagem como Embaixador na Turquia; mas conservava ainda o gesto e os reflexos de um homem de poder. Quando Mário Soares lhes perguntou se ainda se considerava comunista, respondeu: "Não. Sou um social-democrata de esquerda, na linha de Olof Palme, Bruno Kreisky e Willy Brandt". Morreu poucos anos depois, num acidente de viação, na sua Eslováquia natal, já separada da República Checa.

No regresso a Lisboa, fizemos uma pequena paragem em Paris. No quarto de hotel de Mário Soares assistimos à transmissão televisiva do julgamento de Nicolai e Elena Ceausescu. Nicolai Ceausescu tinha submetido a Roménia a uma ditadura férrea, com laivos de megalomania na fase final do regime. Defendia-se agora, neste seu acto final, com bravura, insultando os seus algozes. Foi fuzilado, conjuntamente com a mulher, após um simulacro de julgamento. A única nódoa de violência que manchou a vaga de liberdade que varreu a Europa central e de leste nesse ano de 1989.

O equilíbrio europeu mudou decisivamente nesse ano. Em 1991, desintegrava-se a União Soviética. O processo de construção europeia adquiriu uma nova dinâmica com o aprofundamento e o alargamento. A NATO redesenhou o seu conceito estratégico e estabeleceu uma política de confidence building com as estruturas militares russas. Foi proposta a institucionalização da CSCE (hoje OSCE) como organização de segurança pan-europeia, visando acomodar a Rússia numa arquitectura de segurança europeia. Hoje tudo isto está a mudar de novo. Mas nada mudou tanto a Europa da segunda metade do século XX como esse ano maravilhoso de 1989, em que a queda do Muro, a 9 de Novembro, ficou retida na memória de todos como o acontecimento central e simbólico.
 

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