Gilberto Gil: E agora ele era João

Em disco, homenageia o seu maior inspirador. Em palco, reinventa-se a solo. Gilberto Gil estará amanhã no CCB, em voz e violão. Aqui, fala de Gilbertos Samba, o disco em que ele “é” João. Gilberto.

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No ano em que lança Gilbertos Samba, um disco de samba há muito prometido ao seu público e que acabou por se transformar numa homenagem a João Gilberto, o cantor e compositor Gilberto Gil volta a Portugal para se apresentar a solo, revisitando a carreira num punhado de canções que a moldam e caracterizam e num formato que permite (como se viu em apresentações anteriores) uma maior interacção com o público.

Gilbertos Samba, o disco, aborda o universo sambista pelo lado do repertório do génio da bossa nova, o que inclui canções de autores como Dorival Caymmi, Tom e Vinicius, Carlos Lyra ou até Caetano Veloso (Desde que o samba é samba, que João Gilberto gravou em 1999). Se Gilbertos Samba só deverá vir a Portugal, enquanto espectáculo, em 2015, Gilberto Gil estará a solo amanhã dia 8, em Lisboa, no Centro Cultural de Belém, às 21h.

O seu mais recente disco homenageia João Gilberto. Recorda-se da primeira vez que ouviu o som de João? Lembra-se como reagiu a ele?
Isso foi logo em 1959, no lançamento do primeiro disco dele. Eu era estudante, ouvi-o no rádio e fiquei muito impressionado. Foi das coisas que mais me marcaram, em toda a minha vida de ouvinte musical. Eu não tocava violão ainda, tocava um pouco acordeão, mas dali em diante resolvi tocar violão e isso me trouxe aonde estou hoje.

Em 1981, você participou, com Caetano e Bethânia, ao lado de João Gilberto, num disco chamado Brasil. Aliás, uma das faixas desse disco, Milagre, é retomada por si agora em Gilbertos Samba. Lembra-se como correu essa experiência?
Foi um convite directo do próprio João Gilberto. Ele tinha voltado ao Brasil, vindo dos Estados Unidos e do México, estava a retomar os seus contactos e circuitos de convívio e, no meio de visitas frequentes (eu e Caetano, principalmente) e horas e horas de conversas sobre a canção e o jeito brasileiro de cantar, surgiu esse convite dele para que fizéssemos esse disco, com coisas clássicas, temas de Ary Barroso ou Dorival Caymmi.

Numa entrevista recente, você diz que se esmerou para tocar como João. Como é isso, tocar como João? Como define a abordagem que ele faz ao violão?
Quando escutei as primeiras gravações dele senti que havia ali uma interpretação muito diferente: no modo de acompanhar as canções, de tratar as harmonias e os aspectos rítmicos. E eu passei a tentar decifrar a maneira de tocar do João. E cheguei à conclusão de que havia ali uma mistura, muito bem amalgamada, de samba e de baião, que é outro estilo muito brasileiro, de origens ibéricas e norte-africanas. Foi isso que me levou a reconstituir, no meu modo de tocar, aquele modo inovador dele.

O primeiro tema aqui gravado, Aos pés da cruz, esteve na origem do disco. Como foi?
Há muito tempo que eu vinha prometendo ao público fazer um disco de samba. Quando eu estava na Austrália, há três anos atrás, entre os aborígenes, a rodar o documentário Viramundo, uma noite, de volta ao hotel, comecei a tocar essa canção, que é uma das mais emblemáticas do trabalho inicial do João Gilberto. Então aí, nesse momento, tomei a decisão de fazer o disco de sambas que eu havia prometido. Uma semana depois, ao sair da Austrália, já decidira que ao fazer o disco seria com repertório de João Gilberto.

Nesse repertório você inclui temas de Caymmi, Jobim, Vinicius, Lyra, Caetano (talvez a mais joãogilbertiana das canções que ele escreveu depois de Coração vagabundo). Quis, com isso, mostrar uma ligação entre várias referências?
Não tive muita preocupação de criar nexos exactos entre as canções. Foi a relação de afecto que eu tenho pelas interpretações do João que determinou a escolha. Não houve critérios mais conceptuais, foram critérios emotivos.

O título do disco, Gilbertos Samba, tanto remete para o samba dos Gilbertos (o de João mas também o seu, já que o seu toque musical está obviamente presente) como, lido em inglês, nos remete para “Gilberto’s samba”. Ou o samba de Gilberto, podendo ser uma fusão dos dois num só. Foi propositada, a sugestão?
Evidentemente a concepção da frase remete a forma inglesa, mas é uma coincidência. Na verdade, eu tinha a intenção de chamar ao trabalho “João Gilberto Gil”, mas achei demasiado… Então ficou Gilbertos Samba. Tem maior entendimento internacional.

Na canção Gilbertos escreveu: “Aparece em cada 100 anos um/ e em cada 25 um aprendiz”. Se a primeira referência diz respeito a João Gilberto, quem é, para si, o aprendiz? Ou os aprendizes?
Somos todos. E podemos aprender de Caymmi, de João Gilberto... Eu, Chico, Caetano, todos nós como discípulos de grandes mestres. É a alusão que se propõe.

Eu vim da Bahia, histórica canção sua incluída no disco, acentua a herança musical comum num pólo geográfico: a Bahia. Um pólo que é seu mas também de Caymmi, João, Caetano… A Bahia é, verdadeiramente, um universo musical de excepção?
Acho que a Bahia é, de várias maneiras e por várias razões, um território iniciático da brasilidade. É a terra-madre, o lugar de convergência de todas essas condições do tempo e do espaço, na história, para a formação disso que a gente chama Brasil.

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