A Lídia de Paulo Ribeiro é uma polifonia a 13 vozes

Paulo Ribeiro criou para a CNB uma coreografia que invoca o nome de Lídia na poesia portuguesa. Hoje, no Teatro Camões, 13 “canções” reivindicam a individualidade de 13 mulheres, mas soam a uma só grandiosa canção total.

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Rodrigo de Sousa

Estão 13 Lídias em palco. Por vezes, como se fossem uma só, deixando um rasto coincidente, sobreposto. Logo a seguir, numa fragmentação em que voltam a ser 13, são as individualidades que emergem, esquivas, escondidas por uma cuidada luz que as mantém fora do alcance, numa névoa propositadamente ensopada de mistério.

Cada uma, como refúgio de “paz, beleza absoluta, perfeccionismo”, explica Paulo Ribeiro sobre a sua nova coreografia para a Companhia Nacional de Bailado, baseada na presença da personagem Lídia na poesia portuguesa, que hoje se estreia no Teatro Camões (Lisboa). “Esta é uma Lídia que nos preenche nos vários vazios que temos”, continua, lembrando que este isco lhe foi lançado por Luísa Taveira – “uma verdadeira directora artística, na linha do [Sergei] Diaghilev [fundador e empresário dos Ballets Russes], que pensa os projectos, dá-lhes títulos e desafia-nos para uma coisa muito específica.” Se antes, em 2011, Paulo Ribeiro criara Du Don de Soi como resposta coreográfica à dimensão poética do universo do cineasta russo Andrei Tarkovsky (também para a CNB), desta vez o rastilho foi o modernismo português e o centenário da revista Orpheu. Sendo uma personagem transversal a vários autores da poesia nacional (Sophia de Mello Breyner, Tolentino Mendonça, Natália Correia, etc.), esta é uma Lídia, antes de mais, sugerida pelos versos de Ricardo Reis.

Paulo Ribeiro foi, ainda assim, atrás sobretudo do movimento. E isto porque reconhecendo “alguns rasgos de génio” entende que o tipo de movimento proposto pelo modernismo “é uma coisa muito bem-comportada”, com a qual não sente uma particular identificação. Decidido a não se deixar enredar na poesia e a evitar a construção de um discurso poético sobre outro discurso poético, decidiu ficar à porta, espreitar lá para dentro, mas recusar-se a entrar. “Apesar de ter feito um piscar de olho aqui e ali a um léxico e uma energia do movimento”, reconhece, “não vou entrar no poema nem ser revivalista em relação à época. O modernismo, um pouco como todos os movimentos, é para mim um movimento de sonho, de criar. E não considero que o modernismo seja uma ruptura. Se compararmos com o que aconteceu no resto da Europa com os surrealistas, em que aí era mesmo a quebrar, isso seduz-me muito mais.”

O coreógrafo optou, assim, por deixar que as várias danças próprias da época se reflectissem na sua criação presente sem, com isso, se imporem ou condicionarem em definitivo as suas escolhas. Pensou nos corpos de agora, com a história e os recursos discursivos que hoje têm, e como poderiam eles relacionar-se com as preocupações coreográficas de então. Ao olhar para trás com essa perspectiva, decidiu-se a trabalhar “de uma forma racional, matemática, de composição pura”, num tipo de exercício que há muito não praticava. Com o treino desse músculo, visitando lugares que não frequenta regularmente, o coreógrafo fixou-se primeiro em ideias concretas, em texturas acumuladas, em geometrias, chamando à memória quadros de Amadeo de Souza-Cardoso e de Almada Negreiros. Depois, cultivado e repetido esse padrão de trabalho com as 13 bailarinas, foi deixando que as emoções tomassem conta do processo. “Como a peça se foi construindo do início até ao fim, já é algo que me escapa”, admite, sugerindo que um gesto puxa o seguinte e, em breve, o ponto de partida fica arrumado, meio esquecido, quase apagado pelos passos que se vão seguindo. “Gosto imenso deste processo, de ir construindo e deixando que as coisas ganhem vida própria. E, de repente, foi isso que aconteceu: a peça ganhou vida própria.”

Interioridade e espiritualidade
No interior dessa vida própria, em que Lídia, a personagem, possa talvez equivaler ao “ponto de suspensão da felicidade de que andamos à procura e precisamos encontrar”, torna-se relativamente fácil reconhecer o vocabulário de Paulo Ribeiro, devidamente apreendido e interiorizado pelo elenco feminino da Companhia Nacional de Bailado. Com o suplemento fundamental de, apesar de reconhecível, ser interpretado por um corpo de bailarinas cuja formação e a natureza interpretativa arrasta o movimento para uma dimensão menos comum em ambos. A adaptação existe, naturalmente, de parte a parte. “No ano passado fiz um solo em que estava completamente cru, exposto, e que só eu posso fazer daquela maneira”, lembra Paulo Ribeiro a propósito de Sem Um Tu Não Pode Haver Um Eu, solo inspirado pelo cinema de Ingmar Bergman. Em Lídia o registo é necessariamente outro e aquilo que o coreógrafo faz é projectar-se nos corpos que dirige e levá-los de encontro à intensidade e à tensão que sobressai das notas escritas pelo compositor Luís Tinoco e interpretadas por músicos da Orquestra Metropolitana de Lisboa, dirigidos pelo maestro Pedro Neves.

Depois de em Feminine – e igualmente no seu contraponto, Masculine – Paulo Ribeiro ter já cruzado o universo pessoano, em particular o Livro do Desassossego, com a feminilidade, em Lídia a sensualidade foi objecto de uma pergunta: é algo que está presente e espontâneo, normal e natural, ou é algo construído e feito para parecer que é assim? “Se há sensualidade”, responde o criador, “é aquela que advém da naturalidade, do estar. A peça está construída de uma maneira muito fluida e o movimento nunca é gratuito, seja ele mais ou menos estético. A carga interior e espiritual tem de estar lá.” A interioridade e a espiritualidade são precisamente dois vectores-chave que Paulo Ribeiro aponta para amplificar a voz de cada uma das 13 Lídias em cena. “Numa peça com 13 mulheres ninguém pode ficar amordaçado, é impossível”, afirma em relação à libertação proposta a todas as personagens em simultâneo. “A voz está muito presente e é mais do que uma voz. Também não é um grito, é mais uma canção. Ou várias canções – que nos ensinam, que são militância, que nos revelam coisas, que nos embalam ou que nos acariciam.” Com a preocupação de que, apesar da fragmentação e das várias canções que se ouvem em simultâneo, aquilo que resulte seja, afinal, uma bela, enorme canção polifónica a 13 vozes.

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