A Espanha: sistema político em risco de implosão

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1. A Espanha entra no mês de Novembro sob o signo de colapso do sistema político. Combinam-se três crises: a económica, a da credibilidade dos partidos e a da Catalunha. O próximo domingo, o 9-N, é o dia da “consulta participativa” catalã que se deverá traduzir numa tensa mobilização nacionalista.

Realiza-se o que era inacreditável há seis meses: emerge como força alternativa o Podemos, de Pablo Iglesias, o partido “anti-sistema” que foi a surpresa das eleições europeias e que se propõe fazer implodir as instituições herdadas da Transição de 1978.

Há pânico nas sedes do Partido Popular (PP) e do PSOE. Amanhã, o Centro de Investigaciones Sociológicas (CIS) divulga a sua mega-sondagem sobre as intenções de voto em Espanha. “Fontes bem informadas” do PP anunciam um “terramoto”. O Podemos seria já a segunda força política espanhola e a primeira na intenção directa de voto. Estaria a curta distância do PP e claramente à frente do PSOE. As sondagens divulgadas há uma semana apontavam já essa tendência. A ascensão do Podemos é um fenómeno nacional, de Madrid a Barcelona.

Também na Catalunha o sistema partidário está em mutação. A Esquerda Republicana da Catalunha (ERC) está em ascensão, arrancando a hegemonia à Convergência e União (CyU) de Artur Mas, enquanto o PP e os socialistas sofrem uma queda vertical e o Podemos se implanta. A nota mais saliente é que a condução do processo independentista está cada vez menos nas mãos da Generalitat (governo regional) e cada vez mais nas das associações radicais da “sociedade civil”, como a Assembleia Nacional Catalã ou a Òmnium Cultural. Para analisar a Catalunha, é aconselhável esperar pelo dia 10 de Novembro.

2. As sondagens são apenas um sintoma que pode antecipar a ruína do “sistema”, na sequência da multiplicação de escândalos de corrupção que mancham partidos e sindicatos, municípios e regiões, da Catalunha à Andaluzia. Desta vez, atingiram em cheio o PP.

Outubro foi um mês fatídico. Primeiro foi o caso dos cartões de crédito “negros” da Caja Madrid, salva da falência pelo Estado, em que mais de 80 pessoas são acusadas de usar os cartões para gastos sumptuários e cujo nome mais sonante é Rodrigo Rato, antigo vice-presidente nos Governos de Aznar e, depois, director do FMI. Já foi expulso do PP. Está em liberdade com uma fiança milionária. Seguiu-se Ángel Acebes, antigo ministro e ex-secretário-geral do PP, que teria utilizado a “caixa negra” do partido para comprar acções de um grupo de comunicação “amigo”.

Esta semana, os juízes lançaram a Operação Púnica, com a detenção de 51 pessoas acusadas de fazerem parte de uma rede de corrupção a nível municipal e regional, cobrando comissões em troca da adjudicação de obras públicas e serviços. Operava sobretudo em Madrid, Múrcia, Leão e Valência. Francisco Granados, ex-secretário-geral do PP em Madrid, entrou na cadeia na sexta-feira. Era o braço direito de Esperanza Aguirre, ex-presidente da Comunidade de Madrid e poderosa “baronesa” do PP. Outra vítima é José Manuel Molina, ex-presidente do município de Toledo, próximo de María Dolores Cospedal, presidente da Junta da Comunidade de Castela-La Mancha e secretária-geral do PP.

Quem se segue? Que vão fazer os juízes? Que vão fazer os políticos que se sentem abandonados pelo seu partido e os empresários coniventes? Na segunda-feira, Mariano Rajoy declarou no Senado: “Peço desculpas em nome do Partido Popular a todos os espanhóis. Compreendo a indignação dos cidadãos.”

3. Os partidos, como o PSOE, que atribuem à emergência do Podemos a raiz dos seus males, ainda nada perceberam, escreve o politólogo Blanco Valdés, na Voz de Galicia. “O Podemos é a consequência do fastio perante o estado dos partidos e aquilo que milhões de espanhóis já não suportam: a corrupção.” Conclui: “O Podemos está aqui para nos lembrar, dia após dia, o grave risco que hoje corre este país: de que, aos ombros da corrupção, os [seguidores] de Iglesias possam chegar ao Governo nacional.”

Enric Juliana, director adjunto do La Vanguardia, sublinha outra dimensão. “A Tangentópolis espanhola avança a uma velocidade que recorda o imparável processo italiano do início dos anos 90 contra a corrupção política. Cada dia, mais um escândalo no telejornal. Hoje afecta um partido; amanhã afectará o do lado. A sequência acelera-se, os casos sobrepõem-se e o que fica é uma terrível sensação de desalento e uma colossal crise de confiança no sistema político.” Diagnostica a “falência moral” das instituições.

4. A maior reserva de votos do Podemos não vem da Esquerda Unida, de matriz comunista, que Iglesias tende a absorver. Vem do eleitorado socialista. “O Podemos impede o PSOE de ganhar eleições. Instalou-se na brecha [aberta]. É como um jogo de cadeiras: o Podemos sentou-se na do PSOE e, de momento, o PSOE está de pé” — explica a socióloga Belén Barreiro.

A grande maioria dos novos simpatizantes de Iglesias não é motivada por afinidade ideológica ou por acreditar na sua capacidade de governar. Ele apaga a contraposição esquerda-direita, para explorar a fractura entre “elite e cidadãos”, acrescenta Barreiro. “Ganha porque sabe fazer um diagnóstico que coincide com o dos cidadãos, não porque tenha soluções.”

Explora uma série de dicotomias, escreve o historiador Santos Julià. “Pessoas contra a casta, nova política contra velha política, senso comum contra ideologia, fóruns de decisão contra a lógica dos partidos, país real contra país das elites, democracia contra oligarquia, maioria social contra minoria de privilegiados.”

Antes das eleições europeias, o seu ideário assentava no anti-europeísmo e num anti-imperialismo primário, de inspiração “bolivarista”. Prometia não pagar a dívida. Hoje, propõe “um processo de reestruturação ordenada da dívida”. Não tem programa económico. A par do discurso da democracia directa — uma espécie de “videocracia” — Iglesias impôs ao partido uma estrutura em que o secretário-geral concentra todos os poderes.

5. O PP contava tirar partido da ascensão do Podemos na medida em que este anulava o PSOE. Hoje sente que Iglesias também o ameaça. O cálculo de Rajoy era chegar às eleições do fim de 2015 com resultados económicos que pudesse explorar. Arrisca-se a ser apanhado numa armadilha e assistir à “decapitação” do PP pelos juízes. Escândalos e frustração social podem ser uma mistura explosiva. No PP, muitos o acusam de imobilismo e exigem medidas drásticas contra a corrupção.

Dizia Harold Wilson que, em política, o longo prazo é uma semana. Para Rajoy, um ano é a eternidade. Espera que a tempestade passe. É o risco que escolheu.     

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